Acerca de boa dicção e da pronúncia1 que esta pressupõe, recebeu o Ciberdúvidas um comentário de um consulente (ver resposta de José Mário Costa, no Correio de 20/11/2015), o qual considera que, por respeito ao público e credibilidade, o português usado na televisão e na rádio deve ser neutro e sem regionalismos; e acrescenta: «Este português neutro é artificial, ou seja, não pertence a nenhuma região, nem sequer à própria Lisboa nem a Coimbra.»
Sobre esta perspetiva, gostaria de fazer algumas considerações, que também têm incidência histórica (na imagem, uma mapa de Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982, pág. 7):
1. A dicção dos profissionais que fazem locução na televisão ou na rádio decorre, geralmente, do domínio da pronúncia-padrão do português europeu. Esta é efetivamente encarada pela população como uma modalidade "neutra", que todos os portugueses compreendem e procuram seguir ou imitar sistematicamente ou frequentes vezes, quando se encontram em situações que requerem formalidade, dispensando, portanto, traços dialetais ou sociolinguísticos mais marcados.
2. No entanto, não se julgue que esse português "neutro" é uma simples média que seleciona laboratorialmente alguns dos traços linguísticos da variação existente em Portugal. Na verdade, trata-se de um produto "artificial", mas é também um produto histórico, elaborado regionalmente, entre certas camadas da sociedade2. Entre historiadores da língua considera-se que a norma-padrão do português de Portugal se confunde com o falar de grupos prestigiados pelo exercício do poder em duas cidades que tiveram claro ascendente administrativo sobre todo o território: Coimbra, onde existia (e existe) a durante muito tempo única universidade portuguesa; e a Lisboa, a sede do governo. Sendo Portugal um país fortemente centralizado na capital, a pronúncia lisboeta conseguiu mesmo suplantar alguns traços mais característicos de Coimbra, em cuja região se tem conservado, por exemplo, "ê" antes de lh3. Por outras palavras, é verdade que a pronúncia-padrão é de todos, sobretudo desde que a escolaridade se generalizou e expõe os portugueses a tal modelo – reforçado depois pela interação com os media audiovisuais; mas o resultado dessa elaboração tem sido difundido de uma zona geográfica para as demais, cabendo assim à capital portuguesa (como sucede com muitas outras capitais em diferentes países) um papel histórico determinante na fixação da norma-padrão (leia-se, a propósito, um artigo do blogue Certas Palavras, de Marco Neves).
3. É preciso ainda ter em conta que muitos falantes, tendo tido, na infância ou mesmo na juventude, contacto menos aturado com a pronúncia-padrão, tendem a conservar (e a disfarçar) traços regionais de forma mais ou menos percetível – o que é natural, até porque, geralmente, não temos consciência de todo o nosso comportamento e não o controlamos inteiramente (ainda bem?). Claro está que há restrições sociais à manifestação de tais traços, pelo que muitos portugueses, identificados com a tradição normativa (e às vezes, zelo idealizador), levam muito pouco a sério ou chegam a não tolerar os sotaques regionais, mesmo que eles, em discurso, deixem escapar traços dialetais; outros, apercebendo-se desses "deslizes", censuram-nos e até podem chegar ao exagero e à hipercorreção quando articulam as palavras de forma padronizada.
4. Todas estas considerações mal afloram o tema da difícil tarefa de descrever e interpretar as atitudes linguísticas observáveis em Portugal a respeito da variação linguística regional. Com este pano de fundo – apenas esboçado –, julgo poder depreender-se que um profissional que faça locução, seja de Castro Laboreiro (extremo norte do Minho), de Vila Nova de S. Bento (Alentejo) ou de Lagoa (S. Miguel), procure sempre dominar a variedade-padrão, porque, fazendo nossas as palavras do consulente em causa (ver mais acima), quer ser «levado a sério pelo público». Mas, se a norma-padrão é inegavelmente uma parte essencial da definição e afirmação da língua portuguesa, não será que estamos também a empobrecer o idioma, quando não consideramos ou censuramos a sua variação no território nacional (já não falo das muitas incompreensões decorrentes da variação nos outros países onde se fala o português)? Perante regionalismos fonéticos que a pronúncia-padrão exclui – como sejam a chamada confusão de [v] com [b] (betacismo), o s de Viseu (fricativas apicoalveolares), a monotongação de ei em "ê" em grande parte do Portugal meridional ("lête",em vez de leite) ou a palatalização das vogais micaelenses (entre elas, o u «à francesa», como em "früta", em vez de "fruta") –, ainda iremos a tempo de reagir de outro modo e escutá-los com maior apreço?
1 Nos estudos linguísticos também se usa ou prefere pronunciação, mas emprego o termo pronúncia, que tem tradição nos discursos prescritivo e descritivo a respeito da língua portuguesa, conforme se pode verificar, por exemplo, no texto das Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945. ou, mais recentemente, na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 87).
2 Recorde-se que Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 10), definem norma como «[...] conjunto dos usos linguísticos das classes cultas da região de Lisboa-Coimbra [...]». Mais de duas décadas depois, Fernando Brissos (Linguagem do sueste da Beira no tempo e no espaço, tese de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2011) considera que são as variedades de Lisboa que determinam ou condicionam o processo padronizador e normativo: «Afastamo-nos da tradição na definição de norma linguística portuguesa, ou seja, do que é o português-padrão. Norma não corresponderá neste trabalho à(s) variedade(s) falada(s) pelas classes cultas de entre Lisboa e Coimbra, mas, sim, à(s) variedade(s) falada(s) e difundida(s) nos media ou outros trabalhos culturais de referência pelas classes cultas da própria Lisboa (e, bem assim, da sua área metropolitana). É uma definição que corresponde ao crescente centralismo na capital que o país sofre e à crescente importância dos produtos culturais aí filados (com algum destaque para a televisão) como meio de estandardização etnográfica.» No plano da descrição fonética, igualmente António Emiliano, em Fonética do Português Europeu: Descrição e Transcrição (Lisboa, Guimarães Universitária, 2009, pág. 4), identifica o padrão com a variedade ou variedades de Lisboa e da sua região: «O português standardizado de Lisboa, que se pode referir genericamente como português europeu centro-meridional 'standardizado', em virtude de circunstâncias históricas e sociais diversas, constituiu-se como norma padrão europeia de facto: prestigiado, difundido pelas universidades, pelos meios de comunicação, pelos órgãos da Administração Central e pelos vários mecanismos de codificação linguística (sistema educativo básico e secundário, prontuários, gramáticas, dicionários, etc.), o português culto e formal de Lisboa é a variedade linguística a que, pelo seu estatuto supra-regional de facto, os linguistas se referem metonimicamente como português europeu.»
3 Que a elaboração da pronúncia-padrão devia muito a um certo falar lisboeta era algo que um gramático normativista como Vasco Botelho de Amaral, na perspetiva lisboeta, reconhecia implicitamente há mais de cinquenta anos (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Pátrio, 1958, reedição de 2012, pp. 656-657): «Se passar pela minha rua um homem a pregoar "Peles de coâlho, eu não ligo nenhuma a este pregão, salvo se tiver alguma pele para vender. Mas, se o homem gritar – "Peles de coêlho», eu acho curiosa essa pronúncia, na qual reparo com mais interesse, por não ser a minha. [...] Embora, pois, reconheça o direito de cada qual manter o sabor da pronúncia nativa (pois assim a música da expressão continuará rica de sons), penso tornar-se necessário estabelecer a linguagem-padrão, isenta de sotaques regionais.»
Cf. O que é a norma da língua portuguesa? + As dez línguas de Portugal