«Os entraves, supostamente linguísticos e técnicos, tantas vezes invocados para contrariar a aplicação do Acordo Ortográfico são sobretudo subterfúgios que visam opacificar uma discussão que se desejaria transparente», escreve a vice-presidente do ILTEC, em artigo saído em 2 de março de 2013, no semanário Expresso, o qual a seguir se transcreve na sua versão mais desenvolvida.
O modelo de classificação das línguas do Mundo proposto por Abram de Swaan coloca no centro da constelação o inglês, língua hipercentral; em torno dele gravitam línguas supercentrais, de âmbito internacional, cujos falantes usam o inglês como língua veicular e que são usadas como veiculares pelos falantes de línguas centrais, de âmbito nacional ou regional, muitas vezes com estatuto oficial; os falantes de línguas periféricas, as mais ameaçadas, usam em geral línguas centrais como veiculares.
O português é uma língua supercentral: de âmbito internacional, gravita em torno do inglês e em seu torno gravitam línguas centrais, de difusão nacional ou regional, faladas em países de língua oficial portuguesa. O português é também pluricêntrico: adotado por vários estados, tem várias normas diferentes, atualmente duas estabilizadas, mas potencialmente uma ou mais por cada país que a tem como oficial.
O português encontra-se agora numa encruzilhada. À sua frente estão grosso modo dois caminhos: a via A, que poderá conduzi-lo a tornar-se, a longo prazo, em uma ou mais línguas centrais; a via B, que poderá conduzir a manter o seu estatuto de língua supercentral.
A via A corporiza-se no desmembramento da unidade transnacional do português, através do afastamento progressivo (mais político que linguístico) das suas variedades nacionais, podendo conduzir ao surgimento de novas línguas. A via A tem alguns pressupostos, raramente enunciados, assim resumíveis: a) a língua tem um país-dono, de onde é originária, a que compete em exclusivo a sua regulação; b) os países que a adotam manterão em relação ao país-dono uma posição passiva, renunciando ao direito a regulá-la; c) normas linguísticas de países que não acatam esta relação são consideradas espúrias; d) a codificação da norma da língua competirá em exclusivo ao país-dono; e) esta corresponderá tendencialmente à língua usada pelos expoentes do seu cânone literário, não sendo acessível a todos os falantes, mas apenas a alguns “sábios”; f) mantendo a norma imutável, preservar-se-á uma suposta e aparente pureza da língua.
A via B corporiza-se na preservação da unidade transnacional do português, pela adoção de políticas linguísticas conjuntas que visem a sua preservação como língua comum a vários países, embora respeitando a variação entre os seus registos nacionais. Os pressupostos desta via são assim resumíveis: a’) a língua não tem um dono único e pertence a todos os países que a adotam como oficial; b’) estes assumem-na como sua e arrogam-se o direito a também a regular; c’) todos os países se colocam em igualdade de circunstâncias; d’) a codificação da(s) norma(s) da língua compete, em conjunto, a todos os países que a adotaram; e’) essa(s) norma(s) pertence(m) a todos os países e te(ê)m duas vertentes: uma ou mais normas internacionais, partilhada(s) por vários países, e uma ou mais normas nacionais, correspondente(s) ao uso efetivo em contexto formal, em cada país; f’) descrever a norma, adaptá-la ao uso e às necessidades e torná-la acessível aos falantes fortalece a língua, promove o seu uso e uma cidadania com igualdade de oportunidades.
Muitos destes pressupostos são políticos e ideológicos, e não linguísticos: com maior ou menor influência das politícas, as línguas apresentarão sempre uma salutar variação e as variedades resultantes poderão aproximar-se ou divergir.
Existem, a nível internacional, exemplos de versões matizadas de ambas as vias. Estados-berço de outras grandes línguas europeias optaram por adaptações próprias da via B e não consta que os cidadãos do Reino Unido, da França ou da Espanha desmereçam, lamentem ou rejeitem, respetivamente, a Commonwealth, a Francofonia ou a Hispanofonia.
O Estado português e os países da CPLP têm seguido a via B, pelo que segui-la agora significa prosseguir a que tem sido a política externa destes países nas últimas décadas. Seguir agora a via A em Portugal significa ir em sentido contrário e adotar, em termos de política externa, um nacionalismo isolacionista, apostado em realçar o que separa os diferentes países, obscurecendo aquilo que têm em comum. Adotar a via A atenta contra o próprio cerne da CPLP, organização internacional de que a língua portuguesa é cimento aglutinador.
Ambas as vias são possíveis. O importante é que, ao discutir o futuro da língua portuguesa, os pressupostos e os objetivos de cada uma sejam claros, para que os cidadãos entendam aquilo que de facto está em causa.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO) constitui um instrumento de política linguística que visa a prossecução da via B.
A ortografia não é assunto pacífico: mera norma que convenciona as regras de escrita, a ela são associados aspetos culturais, históricos, ideológicos, económicos, estéticos, etc. Outras línguas europeias passaram ou estão a passar por reformas ortográficas: o espanhol em 2010; o neerlandês em 1996 e 2006; o alemão em 1996; o francês, como nós, em 1990, aplicando-a, também como nós, só agora.
Mais que unificar a língua portuguesa, o AO visa unificar as regras de escrita, conferindo a essas regras flexibilidade suficiente para que as formas resultantes da sua aplicação respeitem a variedade falada em cada país.
O AO é aplicável e está efetivamente em uso, de forma generalizada, no Brasil e em Portugal, que criaram instrumentos reguladores com apenas ligeiras divergências entre si. Em Portugal, o AO entrou em vigor no ensino básico e secundário em setembro de 2011, sem que daí resultasse qualquer convulsão significativa; dos dez jornais com maior difusão em Portugal, apenas dois não o aplicam, todas as cadeias televisivas generalistas o aplicam e as principais editoras também já o fazem.
O Vocabulário Ortográfico Comum é exequível. A sua realização constitui, para os países que não possuem instrumentos reguladores próprios, a oportunidade de os criar e de, na prática, assumirem o português como língua própria, participando na sua regulação. A execução deste vocabulário constitui o contexto ideal para proceder aos acertos finais e obter os consensos necessários à aplicação efetiva do AO no espaço da CPLP.
A discussão sobre o AO tem uma matriz política e ideológica e nela se confrontam as vias A e B, que constituem rostos de duas visões diametralmente opostas sobre a posição de Portugal no Mundo. Os entraves, supostamente linguísticos e técnicos, tantas vezes invocados para contrariar a aplicação do AO são sobretudo subterfúgios que visam opacificar uma discussão que se desejaria transparente.
A aplicação do AO é uma medida de política linguística e é pelos políticos que deve ser tomada, como qualquer outra reforma com efeitos sobre o Estado e as suas instituições. Desde a sua assinatura em 1990, todos os responsáveis políticos eleitos em Portugal o apoiaram explicitamente, incluindo-o várias vezes nos programas eleitorais que levaram a sufrágio.
Aos cidadãos cabe o direito a ter opiniões divergentes e a manifestá-las publicamente. Que o façam é não só possível como salutar, num estado democrático. Espera-se, no entanto, que o façam com verdade, transparência, espírito construtivo e civilidade.
Artigo publicado no semanário português Expresso, de 2 de março de 2013.