«(...) Uma ortografia pode ser conservadora, deixar de ser cosmopolita e fenecer. Veja-se a decadência do francês. Ou pode ser dinâmica e prosperar, como o espanhol. Além de que, ao contrário do que insinuam os opositores, a ortografia nem faz parte da gramática. É mera representação. Cada um fala como ouve falar, daí o conceito de língua materna e a razão dos sotaques regionais em Portugal, que a TV atenuou. (...)»
Uma comissão parlamentar (calma, não vou falar de Berardo), decidiu há semanas propor alterações ao Acordo Ortográfico; entretanto, 20 mil cidadãos, certamente compenetrados do significado da ortografia num idioma, pediram ao parlamento [português] a revogação, pura e simples, do tratado. Uma vez que o interesse da campanha para as europeias tem sido elevadíssimo, acima das minhas meninges, decidi falar nisto — para que, de vez em quando, se defenda o trabalho de especialistas, alguns já falecidos, que com afinco defenderam a língua (Lindley Cintra, Nemésio, Cunha para não falar dos vivos).
Penso que, a bem do país e da língua, o parlamento manterá o essencial do Acordo, para desespero dos versados em dizer mal de algo que não passa de uma representação da língua. Ora o idioma tem um valor decisivo na nossa projeção internacional, o que parece ser indiferente aos críticos. Apenas acham que fato não deve confundir-se com facto e, de facto, não se confunde, porque no Acordo facto tem lá o "c" de sempre; não é uma consoante muda, ou seja, é uma letra que se pronuncia quando se diz a palavra. Mas demagogia, populismo e mesmo fake news estão em todos os aspetos da política, pelo que estariam, necessariamente, na política da língua.
Nelson Valente, um professor universitário e brasileiro, admirador do antigo Presidente Quadros e que recomenda ao atual, Jair Bolsonaro, que tenha «autoridade, capacidade de trabalho e coragem e rapidez nas decisões», surgiu no prestigiado “Jornal de Letras” do Brasil, há cerca de um mês, num artigo intitulado “(Des)Acordo Ortográfico”, a defender a autonomia do brasileiro. Cito: «O português brasileiro precisa de ser reconhecido como uma nova língua. E isso é uma decisão política (...) É preciso dizer, com todas as palavras, alto e bom som: o português brasileiro é uma língua e o português europeu é outra». Sublinho o termo europeu, que exclui deliberadamente o português em África e em Timor, mas adiante.
É também verdade que o da Cultura de Bolsonaro pôs em causa o Acordo com argumentos semelhantes, embora os de Nelson Valente sejam bem mais estruturados. Nestas posições abunda o ultranacionalismo, mas falta a verdade. Basta atentar na frase que citei para se verificar que a língua é a mesma; não há nessa frase nada que não compreendamos ou que não possamos escrever. Neste caso, a ortografia é também a mesma, situação, aliás, semelhante à dos cronistas que avisam que seguem a ortografia antiga. Se virem com atenção, em muitos textos tal é indiferente porque não mudariam uma letra. Na realidade o que muda é 2%. Argumentar com a existência de contradições não vale. Há muitas; até incongruências. Mas quem conhece bem a evolução da ortografia sabe que sempre houve montanhas de contradições e incongruências. A perfeição, sabe-se, é tão impossível como agradar a todos.
Uma ortografia pode ser conservadora, deixar de ser cosmopolita e fenecer. Veja-se a decadência do francês. Ou pode ser dinâmica e prosperar, como o espanhol. Além de que, ao contrário do que insinuam os opositores, a ortografia nem faz parte da gramática. É mera representação. Cada um fala como ouve falar, daí o conceito de língua materna e a razão dos sotaques regionais em Portugal, que a TV atenuou.
A língua é um poderoso instrumento no comércio e nas relações externas. É um legado, um monumento da Expansão portuguesa. Não brinquem com ela.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico