« (...) A celebração deste [Dia Mundial da Língua Portuguesa] é obra de todos nós, mas é-o também – e de modo relevante – daqueles que gizaram e implantaram políticas linguísticas conjuntas que visam a preservação da língua portuguesa como língua comum a vários países, embora respeitando a variação entre os seus registos nacionais [cf. O português na encruzilhada), assim reforçando o seu papel de língua supercentral, de acordo com a terminologia de Abraam de Swaan, na sua obra de 2001, Words of the World.»
Em 2009, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) estabeleceu o dia 5 de maio como o Dia da Língua Portuguesa e das Culturas Lusófonas e comemorou-o pela primeira vez em 2006. Em 2019, a Assembleia Geral da UNESCO proclamou o Dia Mundial da Língua Portuguesa.
A proclamação da UNESCO foi amplamente noticiada em Portugal, levando os céticos do costume a defender que esta poderia ser não motivo de regozijo, mas uma nota inquietante, indicativa de alguma fragilidade do português, brandindo dois argumentos principais: 1) as grandes línguas não carecem de e não têm dias mundiais; 2) só entidades ameaçadas, desprotegidas ou discriminadas têm dias mundiais. Será que têm razão?
Ninguém põe em dúvida hoje em dia o papel da língua inglesa no mundo, não apenas por ser a língua mais falada do mundo, mas sobretudo por ser a usada em mais situações de comunicação diversas e por constituir a grande língua veicular de conhecimento, de ciência, de tecnologia, de notícias, de entretenimento.
Pois bem, a língua inglesa celebra o seu Dia Mundial a 26 de abril. As restantes seis línguas oficiais e de trabalho das Nações Unidas têm também o seu Dia Mundial (o árabe a 18 de dezembro, o chinês a 20 de abril, o espanhol a 23 de abril, o francês a 20 de março e o russo a 6 de junho). Que a UNESCO tenha proclamado o dia 5 de maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa constitui, acima de tudo, um reconhecimento do seu devido lugar entre as grandes línguas do mundo, com os seus mais de 265 milhões de falantes e o seu crescente papel de língua internacional.
A este reconhecimento falta, contudo, atribuir ao português o papel de língua de trabalho da ONU, embora passos decisivos estejam a ser dados para tal nos últimos anos.
A instituição pela ONU e seus organismos de dias mundiais ou internacionais visa geralmente despertar consciências para questões inquietantes e motivar ação. Justifica-se assim a existência de dias mundiais da malária, da luta contra o cancro ou contra a sida, das abelhas, contra o tráfico de pessoas, bem como de dias internacionais das viúvas, das vítimas de desaparecimentos forçados, das pessoas com deficiência, para a erradicação da pobreza.
Porém, muitos desses dias são também e fundamentalmente dias de celebração, tais como os dias mundiais da educação, da saúde, da terra, do jazz, da felicidade, e dias internacionais da amizade, da juventude, da paz, da tolerância ou da solidariedade humana.
É neste quadro de celebração que encaixam os dias das principais línguas do planeta e, entre eles, o novel Dia Mundial da Língua Portuguesa.
Nada como ler o texto da Proclamação do Dia Mundial da Língua Portuguesa. Nele se refere o papel das línguas, e do português, como alicerce de manifestações culturais e expressão de identidades, valores e visões do mundo, de repositório de diversidade cultural e diálogo entre civilizações, de ponte entre sociedades, diversidades de formas de expressão e interação, de partilha e empoderamento.
No texto destaca-se o papel do português como primeira língua de globalização e de encontro entre civilizações da Era Moderna, tendo deixado marcas lexicais em muitas outras línguas e tendo trazido delas muitas palavras e expressões depois adotadas por outras línguas, nomeadamente europeias.
Por uma coincidência feliz, o dia 5 de maio é também, desde 2015, o Dia Mundial do Património Africano e não só, de acordo com todas as previsões demográficas, África será, a finais deste século o continente onde mais se falará a língua portuguesa, como a língua portuguesa e tantas línguas africanas se mestiçaram mutuamente.
Não têm, pois, razão os céticos do costume. O Dia Mundial da Língua Portuguesa deve ser motivo de regozijo para todos os que falam português, os que receberam esta língua de seus pais e avós, os que a estudaram e também os que a adotaram como sua.
Não tenhamos, porém, ilusões. A celebração deste dia é obra de todos nós, mas é-o também – e de modo relevante – daqueles que gizaram e implantaram políticas linguísticas conjuntas que visam a preservação da língua portuguesa como língua comum a vários países, embora respeitando a variação entre os seus registos nacionais [cf. O português na encruzilhada), assim reforçando o seu papel de língua supercentral, de acordo com a terminologia de Abraam de Swaan, na sua obra de 2001, Words of the World.
Cf. Cabo Verde diz que Dia Mundial da Língua Portuguesa ajuda a projetar a língua + UNESCO oficializou o 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa
N. E. – Em relação ao texto original, o que aqui se publica contém algumas ligeiras alterações introduzidas pela autora.
Artigo publicado no Diário de Notícias, no dia 5 de maio de 2020