«[...] o AO90 é já irreversível em tudo o que tem de muito positivo, mas, dispensando a necessidade de o denunciar, deve ser ponderado nas suas incongruências e aplicado em Portugal com discernimento [...].»
Louvo o pormenor da notícia "Parlamento [português] prevê (des)Acordo Ortográfico" [publicada no semanário português Expresso do dia 4 de maio de 2019]. Permito-me, porém, fazer alguns reparos quanto aos exemplos apontados.
A diferença entre o verbo pôr e a preposição por não foi alterada no Acordo Ortográfico de 1990 (alínea a do 2.º da Base VIII).
Os gentílicos como euro-asiático continuaram com hífen no AO90 (ver Vocabulário Ortográfico do Português do ILTEC ou Infopédia, segundo o 1.º ponto da Base XV).
Reabilitar e preencher continuaram a escrever-se da mesma maneira com o AO90 (ver os mesmos dicionários acima) Os prefixos monossilábicos re-, pre-, pro- não obedecem às regras b) do 1.º e do 2.º pontos da Base XVI.
No caso de espectador, a supressão da consoante não articulada implica uma ambiguidade gráfica inaceitável com espetador, na pronúncia com falta do valor diacrítico da consoante. Ou seja, este disparate significa que a supressão sistemática generalizada das consoantes ditas mudas foi um simplificacionismo imponderado.
No caso de recepção o problema é mais grave. Não se trata só da ambiguidade prosódica com recessão, mas também no facto de a palavra inventada *receção dividir a língua, pois a palavra é única no Brasil, com a consoante da sequência interna em harmonia com a nossa anterior grafia. Assim, a grafia *receção é um absurdo, pois contraria o propósito de unificação que justificou a necessidade do AO90.
Este leviano resultado derivou de os autores dos atuais vocabulários para o AO90 terem abusivamente ignorado que as consoantes não articuladas das sequências internas, segundo o ponto 4.1 da Nota Explicativa do AO90, deveriam ser suprimidas obrigatoriamente “só” quando não pronunciadas no universo da língua, o que não era o caso de recepção. Note-se que a alínea e) de 2 do citado documento da Academia das Ciências de Lisboa (para o qual o autor deu parecer) obedecia a este ponto da Nota Explicativa. Dava como exemplos de consoantes das sequências mudas universalmente, por exemplo: acionar, exato, projeto, palavras nas quais a consoante é inerte na pronúncia da vogal e, portanto (salvo o respeito pela história das palavras que a norma de 1945 não esquecia…), deveria ser suprimida no critério unificador do AO90.
Do meu ponto de vista atual, o AO90 é já irreversível em tudo o que tem de muito positivo, mas, dispensando a necessidade de o denunciar, deve ser ponderado nas suas incongruências e aplicado em Portugal com discernimento. Assim, seria conveniente que os atuais vocabulários para o AO90 fossem revistos considerando a simplificação sempre secundária em relação a outros critérios de base, como as virtualidades peculiares da variedade portuguesa da língua.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico