«(...) Com as suas variantes, corruptelas e termos que se transmitem e também se transmutam de geração em geração, estes falares e dizeres são uma amostra riquíssima do saber popular e dos seus códigos. (...)»
[crónica do jornalista Nuno Pacheco. "Público", 5/08/2016]
Calão é palavra matreira. No dicionário, tanto lhe dá para a mandriice (como calaceiro) como para a pesca (chama-se calão a um barco usado na pesca do atum), mas mais comum é tal palavra servir para designar uma "linguagem especial usada por certos grupos". Não há quem não saiba o que é, na verdade. Pois [neste dia, 5/08] é lançado no Porto, por alguém que de calão não tem nada, um Dicionário de Calão do Porto revisto e aumentado pelo seu autor, João Carlos Brito, um professor portuense e portista. Muitos saberão de cor expressões que lá vêm impressas, e outros, lembrando os antigos discos dos Trabalhadores do Comércio, imaginam o que é possível fazer, bai num bai, com "a pronúncia do Norte" (olá, GNR).
Mas o ressurgir deste Calão, actualizado (a sessão de lançamento está marcada para hoje às 21h30, no Café Progresso), serve de pretexto para recordar que, muito à margem das academias (e mais ainda dos acordismos), há por esse mundo fora exemplos de expressões, localismos, regionalismos e modos de falar e de dizer que enriquecem as línguas crescendo nelas mas à sua margem. Eles são a tal "linguagem especial usada por certos grupos", que em grande parte se torna identificativa de uma região, uma cidade, um lugar. Este ano, por exemplo, surgiu nas livrarias o Pequeno Dicionário Caluanda (Guerra & Paz, 2016), com "1001 termos da fala de Luanda explicados em português" por Manuel S. Fonseca, editor e autor, antigo crítico de cinema, que viveu na capital angolana entre 1959 e 1976.
E lá estão, no falar dos caluandas (ou naturais de Luanda), palavras que Portugal ao longo dos anos foi também usando ou absorvendo na sua gíria popular: garina (rapariga), galar (olhar de forma sedutora uma rapariga), ganza (estado de êxtase causado por drogas), guito (dinheiro), amigar (viver maritalmente), yá (sim), bué (muito), buereré (muitíssimo), candonga (tráfico ilegal). Isto era o que já sabíamos. Mas vejam o que uma simples acentuação pode fazer a uma mesma palavra: Áka é uma expressão de espanto; e Aká é o diminutivo dado a uma AK47, uma Kalashnikov soviética. Que também pode ser kalaxi. Mais: biaco é branco; boiado é bêbado (xibado também é); camuelo é invejoso; campar é descansar ou morrer; kabomba é polícia; kibuca é prostituta; kinamas são as pernas; mono é filho, criança (sendo ndengue também criança mas o filho mais novo, caçula no Brasil); nzala é fome; ngambi é informador; nguzu é força; ruar é expulsar; salar é trabalhar, não é pôr sal em alimentos; sandapé é pontapé; tchacar é comer ou fazer amor; umar é acabar; vizar é bater ou agredir; e zigaiar é fugir. Dos 1001 registos, é apenas uma pequena amostra!
Como este, há outros dicionários que nos levam a outras falas e dizeres. Atravessando o Atlântico, até ao Brasil, veja-se o Dicionário da Língua Baianêsa, de Luciano Jatobá (Feira de Santana, 2004), que regista inúmeras palavras e expressões usadas na Bahia (sobretudo no interior), com um pequeno apêndice para termos usados nalguns estados do Nordeste. Por exemplo: marrudo é uma pessoa forte no Maranhão; avexado é apressado no Piauí; abirobado é maluco no Ceará; galalau é uma pessoa alta no Rio Grande do Norte; cubar é olhar na Paraíba; afolosado é frouxo em Pernambuco; e assuntar é ouvir e entender em Alagoas. Mas voltando à Bahia. Morrer? Abutuar o palitó; Sofrer? Apanhar mais que mala velha pra tirar poeira. Dar e receber? Balainho vai, balainho vem. Alto e magro? Bulacha numa vara. Lugar distante? Cafundó dos Judas. Falador? Garganteiro. Invejoso? Olho grande ou olho gordo. Gente inconveniente por perto? Tem roupa na corda. Ladrão? Unha de gato. E como dizer a alguém: vais pagar-mas, tarde ou cedo? Tua batata está assando.
Ora atravessando de novo o Atlântico, agora rumo a Portugal, temos o Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves (Algarve em Foco Editora, 1996), que regista um lote (bem maior, diga-se) de "palavras, expressões e modos de dizer" algarvios. Vejamos: falar "à fina" é falar à política; pedir esmola é falcar; avistar ou ver bem é declarar; coisa mal feita é engeroca; consertar é enxabicar; danado ou zangado é marafado (e este será dos termos algarvios mais conhecidos e glosados no país); tagarelice é pai-sota; dizer mal de alguém, ou caluniar, é retraçar; frigideira com cabo é um tachinho de rabo; tareia ou sova é uma tuna; grande quantidade é xaraval; e coisa sem préstimo é zembel.
É, tudo isto, português? Quem o negará? Com as suas variantes, corruptelas e termos que se transmitem e também se transmutam de geração em geração, estes falares e dizeres são uma amostra riquíssima do saber popular e dos seus códigos. Seja em que continente for (e esta pequeníssima amostra abrange três), a língua é coisa demasiado viva para ser... terraplenada.
Já que estamos em maré de falares e de jogos de palavras, parece que anda o diabo à solta. Passos Coelho disse que o diabo viria até nós em Setembro; e Donald Trump garantiu que o diabo era Hillary Clinton. Portanto, se ambos estiverem certos, Hillary Clinton visitará Portugal em Setembro. Preparemo-nos. Talvez com forquilhas e um dicionário de diabês.
crónica do jornalista Nuno Pacheco, no jornal Público de 5/08/2016