Para o historiador e político José Pacheco Pereira, o Acordo Ortográfico de 1990 é «mais um dos aspectos do desprezo pela cultura das humanidades que caracterizou estes últimos anos». Texto transcrito do jornal "Público" de 7 de maio de 2016.
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
As declarações do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa sobre o Acordo Ortográfico são uma das últimas janelas de oportunidade para que se feche em Portugal toda uma história de medíocre engenharia da língua, sem nenhuma vantagem nem mérito, cuja manutenção, por inércia e quase só por inércia, tornará Portugal e a cultura portuguesa mais débeis, menos influentes e mais isolados. Se há "reversão" que se exige do governo é a do Acordo Ortográfico, obra de políticas de facilidade, destinadas a resolver problemas complexos com um truque de engenharia política imposto por governantes cuja relação com a língua e a cultura portuguesa é, para não dizer outra coisa, de bastante indiferença. As divergências de ortografia com o Brasil, o grande argumento para o Acordo, têm a ver com coisas muito diferentes de uma norma. Têm a ver com a pujança do português do Brasil, empurrado por uma sociedade dinâmica e aberta a muitas outras línguas e influências, que nunca conseguiremos domar com um Acordo deste tipo. Bem pelo contrário, é bom para o português como língua que ele tenha como locomotiva o Brasil, que nos enriquece pela sua diferença, enquanto que o português de Portugal pode permanecer o cânone cultural da língua, fiel às suas origens latinas, e transportando uma história que vale muito mais para a cultura brasileira do que uma variante mortiça da ortografia abrasileirada, escrita a contragosto e sem chama. O português é o português e é uma enorme vantagem cultural, mesmo no mercado competitivo da cultura, que ele permaneça na sua ortografia fiel às suas origens latinas. O Acordo é mais um dos aspectos do desprezo pela cultura das humanidades que caracterizou estes últimos anos. De Santana Lopes e Sócrates a Passos Coelho e, se não fizer nada, a Costa.
O Acordo Ortográfico é um monumento de ambiguidade às relações entre Portugal e os países onde se fala a língua portuguesa, que ninguém desejou nem pediu e que acabou por servir para gerar enormes efeitos perversos, que se arriscam a cair apenas sobre Portugal, visto que no Brasil, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor, o caminho seguido é deixar o Acordo apenas na sua condição de papel. Para fazer esta “reversão” basta apenas tornar a sua aplicação facultativa, e logo a seguir a força colectiva da recusa ao Acordo isolará a minoria que o defende. O Acordo só existe em Portugal pelo absurdo de termos governos que o têm querido impor isoladamente a nível nacional, o que é o melhor exemplo do seu falhanço como acordo internacional, que não obriga ninguém visto que vários signatários resolveram não o aplicar, o que o torna caduco.
Acabar com o Acordo já tem custos, custos que de há muito foram anunciados e previstos e que poderiam e deveriam ter sido evitados. Os custos são de duas ordens: uma, a mais grave, o facto de uma geração de crianças e jovens ter sido educada com as regras do novo acordo, processo que se agravou pelo facto de os seus defensores terem estado a criar à pressa um facto consumado, para tornar o Acordo inevitável e não se poder andar para trás. Como o Acordo nunca seria implementado pelo seu mérito nas escolas e no Estado, onde muito pouca gente o aceita como seu, forçou-se a sua aplicação manu militari, com ameaças e sanções mesmo que de legalidade muito contestável. Admito que isso signifique que para uma faixa etária de portugueses a sua maneira de escrever fique numa espécie de limbo, mas estão longe de ser a maioria dos portugueses, jovens adultos e mais velhos, que nunca seguiram as regras da nova ortografia. Por isso, limbo por limbo, mais vale corrigir o mais depressa possível aquele que é de centenas de milhares, em vez de forçar o de milhões. É o custo desta operação de engenharia da língua pago pelos mais novos? É. Mas iriam crescer num mundo em que a escrita de qualidade, os jornais de referência, o português de todos os países africanos de língua portuguesa, seria o da ortografia anterior ao Acordo. Já lá vamos ao Brasil.
O segundo custo, o de alterar de novo os manuais escolares e outros documentos em que se forçou a aplicação do Acordo, também existe, mas os prejuízos a médio e longo prazo do Acordo são muito maiores do que o custo dessas alterações a curto prazo. O Estado pode ir corrigindo os seus papéis pouco a pouco, e alguma forma de indemnização pode ser dada às editoras de livros escolares. Já penso que as editoras que se apressaram a correr a fazer livros com as regras do Acordo, enquanto outras mantinham a antiga ortografia, ou porque se opunham ao Acordo ou porque os seus autores não aceitavam as novas regras – o que foi a regra – não devem receber qualquer indemnização. Estavam prevenidas das muito sérias objecções que existiam quanto à legalidade do Acordo, e aceitaram o risco.
Mas se se acabar com o Acordo o mais depressa possível – e essa urgência é real para evitar mais estragos do que os que já foram feitos – não se pode ignorar os seus custos, não se pode deixar de dizer com clareza que os custos da sua manutenção são muito maiores e particularmente gravosos para um bem intangível, o da influência do português como língua nacional de cultura e história. O que acontecerá, sem nunca se resolver a divergência com o Brasil, será a divergência cada vez mais acentuada entre o português que se escreve em Portugal e o que se escreve nos PALOP. Com Angola, Moçambique, Cabo Verde sem aplicar o novo Acordo, com o Brasil a escrever como muito bem lhe apetece, ficará Portugal isolado numa variante ortográfica empobrecedora, cujos efeitos serão tornar cada vez mais bizarra a escrita do português.
Um dos argumentos dos defensores do Acordo é que se trata apenas de mudar a ortografia e isso não muda a língua. Foi o argumento com que se me respondeu quando falei do abastardamento do português que, no meu ponto de vista e no de muitos outros, resulta da aplicação das novas regras ortográficas. Considero o argumento absurdo, como se na língua que falamos e lemos – insisto, falamos e lemos – a imagem física das palavras não contasse, e fosse o mesmo escrever aspeto e aspecto. As palavras transportam uma dimensão cultural e na sua escrita não são mera ortografia, como melhor do que ninguém João Guimarães Rosa compreendeu, tratando a língua portuguesa como sentido, som, e imagem.
O Acordo Ortográfico não é ciência, nem lei, é política. Como política, é prejudicial à nossa cultura a nível nacional e como elemento de política externa é um acto político clamorosamente falhado e cujas consequências do seu falhanço caem essencialmente sobre Portugal. O Presidente teve a coragem de levantar o assunto, convinha agora dar ao seu acto a força da opinião pública. Há muitas maneiras de o fazer, e os juristas e constitucionalistas certamente que encontrarão forma de dar expressão legal a esta “reversão”. Pode considerar-se a sua caducidade visto que não está a ser aplicado pelos outros signatários, “reverter” a sua imposição administrativa, ou, levar os portugueses a pronunciarem-se em referendo, mesmo que de forma não vinculativa, sobre o Acordo. Não são os opositores do Acordo quem tem medo do referendo, bem pelo contrário. Mas o tempo urge, visto que os defensores do Acordo pouco mais têm a seu favor do que a inércia.
Texto transcrito do jornal Público de 7 de maio de 2016.