« (...) Importa (...) consolidar uma visão plural da língua portuguesa que tenha em conta as suas apropriações e, sobretudo, não combata as línguas maternas. (...) »
Os ecos das celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa estão ainda próximos e, de facto, é de assinalar o reconhecimento pela UNESCO de uma língua que, não sendo oficial nas Nações Unidas, caminha para esse estatuto.
Devemos, assim, perguntar qual a importância que pode ter esse reconhecimento e de que forma beneficia os povos que falam ou adotaram o português como sua língua. Alguns dos debates a que assisti nesse dia foram muito vivos, refletindo também sobre o modo como o português convive com outras línguas nacionais. Mia Couto dizia que amava a língua portuguesa porque ela é um caminho para abraçar outras identidades. E esse será decerto um valor que precisamos reforçar: como disse o Presidente da Academia Brasileira de Letras, o poeta e ensaísta Marco Lucchesi, o português é uma língua pluricêntrica, cujo centro está em toda a parte. Começou por ser a língua de um país para se tornar, no princípio do século XIX, a língua de dois países, e hoje é a língua oficial de nove países em quatro continentes. Por isso, adquire tão grande importância a elaboração do primeiro Dicionário do Português de Moçambique, projeto lançado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa com apoio do Instituto Camões, e coordenado pela linguista Inês Machungo.
Este e outros projetos contribuem para uma política de língua que afirma um português plural, caminho que importa prosseguir. Quando nos séculos XV-XVI se discutia na Europa a questão da língua, defendendo muitos o latim como língua única pela sua relevância literária, científica e administrativa, venceram os vernáculos que serviram para configurar os estados modernos e também para democratizar as línguas. Mas já nessa altura o português se abria às línguas de outros povos, como assinala João de Barros no célebre diálogo em louvor da língua de 1540: «E, agora, da conquista da Ásia, tomamos "chatinar" por "mercadejar", "veniaga" por "mercadoria", "lascarim" por "soldado", "zumbaia" por "mesura" e "cortesia", e outros vocábulos que são já tão naturais na boca dos homens que naquelas partes andaram, como seu próprio português.»
As línguas são entidades vivas que se transformam, como também se altera a sua centralidade e até a sua função. Podem ser ferramentas de comunicação, elemento de identidade ou património cultural imaterial. Mas hoje, mais do que nunca, temos de saber que as línguas integram os Direitos Humanos e, sobretudo, participam da diversidade que nos caracteriza como Humanidade.
Por essa razão, vários debates no âmbito das celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa destacaram a importância das línguas nacionais e deixaram a mensagem de que a sua valorização não se opõe ao português e, pelo contrário, permitirá um melhor domínio da língua de comunicação e de escolaridade. Muitas das dificuldades de aprendizagem se relacionam com um domínio linguístico reduzido e, por isso, é tão importante articular língua materna e língua segunda, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade, reforçando a formação dos professores para uma educação plurilingue.
Importa, assim, consolidar uma visão plural da língua portuguesa que tenha em conta as suas apropriações e, sobretudo, não combata as línguas maternas. Há alguns anos, existia a ideia peregrina de que a escolha do inglês pelas jovens nações acelerava os processos de desenvolvimento e, nesse sentido, a cooperação internacional tinha uma perspetiva muito crítica sobre o ensino em português nos PALOP ou em Timor-Leste. Nem tudo correu bem nos projetos educativos nesses países, mas prossigo com a certeza de que o ensino em português é uma importante via para o desenvolvimento social, ao mesmo tempo que contribui para que esses povos disponham de uma língua global. Falta muito caminho para que a língua mais falada no hemisfério sul seja, de facto, uma mais-valia para os seus falantes e não apenas a língua dos mais pobres. Mas basta atentarmos no interesse internacional pelo português para se perceber que esse horizonte está a surgir.
Cf. Dia Mundial da Língua Portuguesa em 2021 + A língua entranhou-se tanto que já sonham em português: seis histórias de cidadãos estrangeiros a viver em Portugal + Português. Quanto vale a língua mais falada no hemisfério sul? + Uma língua que cresceu 27 vezes, de Leonídio Paulo Ferreira + Uma língua do mundo, para o mundo
Artigo da autora publicado no Diário de Notícias em 12 de maio de 2021.