Sobre a eventual reavaliação do Acordo Ortográfico (AO), que o chefe de Estado português não excluiu em declarações que fez durante a sua visita oficial a Moçambique, a jornalista Ana Paula Azevedo faz algumas considerações.
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
Já lá vão 26 anos desde a assinatura do Acordo Ortográfico (AO) por todos os países da CPLP e sete desde que o Parlamento português decidiu que entrasse em vigor ao fim de um período de transição e adaptação que terminaria em maio de 2014. Foi ratificado já por todos os países da CPLP, menos Angola e Moçambique (aqui mais avançado, em discussão pelos deputados). Em Portugal, há pelo menos cinco anos letivos que está a ser estudado nas escolas e na última época de exames os alunos foram penalizados se escrevessem pela grafia antiga. Os serviços do Estado adotaram o AO, bem como a maioria dos órgãos de comunicação social.
Eis senão quando, nos últimos dias, reentrou com estrondo na agenda nacional, pela inesperada mão do Presidente da República. À qual logo se agarraram os contestatários de sempre, que pugnam pela revogação, chegando a invocar, baseados não se sabe em quê, que a maioria dos portugueses não se revê neste AO (sim, imagina-se que nem devem dormir...).
Mais do que andarmos a discutir se é legal ou inconstitucional (até há quem esgrima o argumento de que o AO foi mais um ato de despotismo do Governo de José Sócrates, que tem muitos pecados mas neste caso, na verdade, se limitou a cumprir um compromisso do Estado, que aliás foi transversal a governos de diferentes cores políticas), devíamos era olhar para a frente e tratar de melhorar a aplicação do Acordo. Através de uma autoridade na Língua portuguesa, que analisasse as palavras cuja grafia é mais discutível. A fixação de regras e a resolução de problemas nesta matéria cabe aos linguistas, que produziram este AO.
Se há problemas, portanto, resolvam-nos. Mas tendo sempre presente que a Língua não é imutável, nem os acordos entre Estados são perfeitos, e deve ser feito um esforço de harmonização no seu tronco comum, independentemente de cada país continuar a ter as suas particularidades, tal como está previsto no AO.
Pelo meio, talvez seja bom pensar nas crianças e jovens que já estudam há vários anos segundo a nova grafia: da mesma forma que ninguém acha bem que cada governo que entra mude currículos e formas de avaliação, também não parece muito feliz a ideia de alterar ciclicamente a forma como escrevem. Para confundir as suas cabeças, já chega a nova terminologia gramatical, essa sim do domínio de marcianos e que não mereceu indignação semelhante à do AO.
A quem interessar e quiser formar opinião, será útil gastar uns minutos de leitura no portaldalinguaportuguesa.org – onde se pode ver que andamos a discutir e a fazer acordos ortográficos há 100 anos. Entre as normas decididas no princípio do século XX, e não aceites pelo Brasil, estava por exemplo a expulsão das letras k, w e y do alfabeto. Imagina-se como isso deve ter custado aos amantes da valsa, já para não falar dos Venceslaus e dos Valteres deste país. Tal como agora, mas ao contrário: se não fosse com o mais recente AO, muitos jovens se interrogariam por que não podiam escrever à-vontade kuduro, kispo ou windsurf.
Rezam as crónicas que Fernando Pessoa continuou a escrever philosophia, enquanto nas escolas passou a ensinar-se filosofia. Hoje, parece-nos estranha a teimosia do grande poeta, mas ele estava no seu direito, tal como os atuais contestatários da nova grafia ou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a quem ninguém condenará certamente se continuar a escrever os seus discursos sem AO. Mais ano ou menos ano, mais quarto de século ou menos quarto de século, a questão há-de resolver-se por si. De tal forma que daqui a nada seremos interpelados pelos nossos filhos ou netos: «Vocês escreviam acção e excepção? Mas que cotas...».
in jornal Sol de 10/05/2016