« (...) O português tem até hoje duas normas codificadas, é certo, a brasileira e a portuguesa, mas com a paz, o desenvolvimento e o reforço da democracia nos demais países de língua portuguesa, é inevitável que esta passe a estar no centro das atenções das autoridades e que novas normas, descritas e codificadas, duas já a emergir, venham a ser assumidas. (...)»
No tempo da troika, assisti a uma mesa-redonda, na qual se discutia a União Europeia, o euro, o estado social e a economia de países como Portugal, assim como se equacionava o interesse de o nosso país abandonar a UE e adotar o escudo. Os oradores e a maioria do público eram pessoas acima dos 50. Quando se abriu o debate, a maioria dos participantes esteve em consonância com a mesa, trazendo argumentos para justificar os benefícios de Portugal deixar de pertencer à UE. Uma das pessoas mais jovens da audiência pediu a palavra e explicou ser uma jornalista, desempregada, de 30 e poucos anos, com um irmão que se preparava para partir para um intercâmbio Erasmus; explicou que os seus amigos estavam maioritariamente na casa dos 30, 40 anos, que se sentiam cidadãos europeus de facto, se identificavam com a União e nem lhes passava pela cabeça abdicar de todos os benefícios que a Europa lhes trouxera, nomeadamente a mobilidade e a modernidade. A intervenção criou alguma consternação entre os presentes. Ninguém esgrimiu argumentos contra o que fora dito, mas o ambiente arrefeceu e a discussão ficou por ali.
As palavras daquela mulher abalaram algumas das ideias que até então eu cultivara com firmeza e convicção. Felizmente sou professora e mantenho contacto constante com pessoas mais jovens, converso com elas, atendo aos seus pontos de vista com facilidade e até questiono e revejo as minhas ideias quando se justifica. Foi inevitável estabelecer um paralelo entre as diferentes visões da Europa, da União, do euro, por um lado, e as visões diversas sobre a língua portuguesa, a sua norma e o pluricentrismo que coexistem.
Na última década, vários países da CPLP e a Comunidade no seu todo, através de organismos como o IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), têm vindo a adotar medidas baseadas na gestão partilhada das políticas linguísticas sobre o português, em estratégias conjuntas que visem o fortalecimento da língua e a sua difusão, que a preparem, e.g., para ser língua de trabalho da ONU. A CPLP, que tem a língua portuguesa como alicerce, tem vindo a entender o quanto ela é fundamental para a sua coesão e êxito. Estas políticas são assentes na visão de que a língua portuguesa é pluricêntrica e não bicêntrica, i.e., não é apenas a Brasil e Portugal que compete regulá-la e sobre ela decidir, mas que o português é efetivamente pertença de todos os que a adotaram, independentemente do continente de onde provêm ou da cor da sua pele. O português tem até hoje duas normas codificadas, é certo, a brasileira e a portuguesa, mas com a paz, o desenvolvimento e o reforço da democracia nos demais países de língua portuguesa, é inevitável que esta passe a estar no centro das atenções das autoridades e que novas normas, descritas e codificadas, duas já a emergir, venham a ser assumidas. A mobilidade dos cidadãos e a modernidade da CPLP também dependem da adoção destes princípios.
Não pensei sempre assim. Não sou jovem, respeito os meus mestres e de quase todos aprendi que o português é o do Brasil e o de Portugal e dos outros países. O trabalho técnico e científico sobre a língua e o contacto com linguistas de várias gerações e proveniências fizeram-me repensar esses "dogmas". É possível que as ideias que agora defendo venham, também elas, a tornar-se obsoletas. Se for o caso e eu ainda por cá andar, voltarei a questioná-las. Mas agora penso e acredito nesta língua que é una e múltipla, partilhada e cada vez mais forte.
Artigo da autora, na sua coluna semanal "Esta língua que todos somos", no Diário de Noticias do dia 12 de maio de 2020