«(...) A vulnerabilidade deste acordo (...) decorre da ideia simplista de que um sistema gráfico é a tradução de um sistema linguístico oral, conducente a um esquema de reprodução económica e simplificada da verbalização oral (...).»
Muito recentemente, em defesa do actual Acordo Ortográfico (AO90), Lúcia Vaz Pedro (LVP) deu uma pálida ideia da sustentação às alterações gráficas para a língua portuguesa. Para que conste, emaranhou-se numa teia de contradições, optando por um efeito de vitimização que não evitou o espectáculo menor de quem defende a todo o custo e sem qualquer brilho uma das piores opções tomadas ao nível da cultura portuguesa, na última década. O debate ocorreu na Feira do Livro de Lisboa, no decorrer da apresentação da obra Por Amor à Língua (editora Objectiva), de Manuel Matos Monteiro (autor de um notável trabalho de vigilância da Portuguesa língua), contando ainda com a participação do jornalista Nuno Pacheco, do Público – a moderação ficou a cargo de Ana Daniela Soares.
A vulnerabilidade deste acordo – que, na verdade, não o é ainda, uma vez que a sociedade científica brasileira não o ratificou até hoje – decorre da ideia simplista de que um sistema gráfico é a tradução de um sistema linguístico oral, conducente a um esquema de reprodução económica e simplificada da verbalização oral. Ora, basta pensar em como os ingleses convivem com dois sistemas que, como se sabe, muito pouco têm de comum, considerando a transcrição fonética.
Um dos momentos protagonizados por LVP (para além do neologismo “analfabetização” e de uma farta dose de auto-elogio) foi o de convocar uma menina da plateia e pedir-lhe que escrevesse uma palavra: tratava-se do vocábulo “óptimo”, que a menina grafou como entretanto lhe ensinaram – “ótimo"; de seguida, encaminhou a menina, fazendo-a ler aquela palavra, com articulação do “p”. E conseguiu. Isto significa apenas que a geração mais recente de alunos não foi treinada para uma leitura pela qual se tomasse consciência da não articulação de certas consoantes.
Lembremos que o AO90 entrou em vigor no sistema de ensino Português no ano lectivo de 2011/12. Nada de estranhar, portanto. Impor-se-ia, num cúmulo de perversão, pedir-se a um aluno mais velho que escrevesse a mesma palavra, de acordo com aquilo que lhe foi ensinado e que estava em vigor antes de 2011. Provavelmente, entraria em cena a consoante “p”.
Baseada na falsa ideia de que uma escrita “fonológica” é mais natural, LVP quis criar o maior obstáculo a que uma reversão do AO90 pudesse (e possa) ter lugar, liquidando-a de vez. E como? Partindo do pressuposto de que uma reversão seria um atentado e uma irresponsabilidade perante uma quantidade inaudita de alunos que fazem parte do sistema vigente, de pais a quem não seria fácil justificar alterações e de professores acostumados a ameaçar novidades. E, por isso, num processo argumentativo falacioso (ad misericordiam), usou (o exemplo) da menina, que melhor desencoraja a transgressão e reversão, e de forma mais célere impõe a cultura da acomodação: a sociedade precisa (de) que os seus filhos se sintam seguros no mundo do pragmatismo, mesmo quando esquecem as origens. Mas “a menina de LVP”, longe de qualquer disputa linguística, e caso fosse acordado, escreveria “conosco” se assim lho doutrinassem, ou “oje” e “umanidade”, fosse a regra da não articulação oral levada ao seu limite e ensinada nas escolas. Os alunos aprendem o que lhes ensinam – nada de novo, mais uma vez.
O que este acordo pretendia, se pudesse ser acordo (pelo que presumo não ser senão reforma), era, em especial, homogeneizar (uniformizar) a grafia do Português de Portugal e do Brasil (o que se depreende da nota introdutória ao Novo Acordo Ortográfico de João Malaca Casteleiro), sem desprimor pelos outros países lusófonos e lusógrafos (passo o neologismo): tarefa impossível e inglória. Nessa matéria, os falantes brasileiros arriscam-se a ser mais oralmente etimológicos do que os falantes portugueses (entenda-se, nascidos e versados na variante linguística de Portugal), uma vez que poucas serão as consoantes ditas “mudas” que lhes escapam – dirão, para mal do AO90, “recepção” ou “acepção”. Resultado: em vez de homogeneizar, o AO90 estabeleceu uma série incontável de divergências lexicais. Ou seja, falhou.
E também falhou porque estabeleceu um sem-número de arbitrariedades, nos casos das sequências consonânticas, em favor das regras facultativas de pronúncia (os casos de caracterização/caraterização ou sumptuoso/suntuoso); e falhou, porque preteriu as pronúncias cultas, ainda que circunscritas, aos vulgarismos orais (ceptro/cetro); e falhou, porque fez tábua rasa da etimologia nas palavras cognatas (egiptólogo/egípcio/egito); e falhou, porque lançou a aporia pelo fenómeno da redução vocálica (recepção/receção/[receção], com o som articulatório do segundo “e” no valor fonético de “e” mudo, ou vogal fechada), decorrente do efeito da leitura. E falhou por minudências, como a da rasura do acento na paroxítona de excepção “pára”, que converge para a preposição homónima, ou com o adjectivo “óptico”, transposto a “ótico”, confundível com o que é relativo ao ouvido. E falhou, porque se quis afirmar por decreto, desacoplando-se da génese linguística, de raiz maioritariamente latina. Falhou em toda a linha.
A degradação e a vulgaridade da língua é um fenómeno que este AO90 veio acentuar. Ao contrário do que pensa LVP, a língua não é o que dela fazem os falantes, mas o que os falantes se permitem fazer, em consonância com uma série de regras, plasmadas no sistema gráfico – e, a errar, que o façamos dentro de uma ordem estabelecida. Caso contrário, o “idioma” das sms e de outros sistemas de escrita para comunicação rápida e espontânea passará a deter o estatuto de competência técnica e linguística. Só que isso seria contribuir para a mortal iliteracia a que agora ficámos um pouco mais expostos.
Procurarei, futuramente, comprovar como este AO90 criou já debilidades ao nível da leitura e como, com boa probabilidade, contribuirá para alterar a fonética do Português europeu, no plano da erosão vocálica. Perante a quantidade de imprecisões e, sejamos francos, de falhas, é tempo de confessar que nos enganámos e que o que é inadmissível deve poder ter um retorno: o do regresso à Cultura. A língua não é uma noite fechada, sobre a qual interesses de alguns linguistas se determinam, mas uma aurora e um começo, sempre um começo renovado em sua legítima defesa, enquanto organismo perseguido e francamente fustigado pela indigência de muitos usuários.
N.E. – Ver a resposta da professora Lúcia Vaz Pedro: aqui + Revogar ou não revogar o Acordo Ortográfico?
Artigo transcrito do jornal Público no dia 16 de julho de 2019. Escrito na norma anterior ao Acordo Ortográfico.