Conheci o Professor Malaca no final da década de 80, quando ingressei no Mestrado em Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). Fui sua orientanda de mestrado e de doutoramento, sua assistente e sua colega. Sempre me tratou com respeito e consideração, dando-me toda a liberdade para desenvolver a minha pesquisa. Sempre me permitiu expressar as minhas opiniões com frontalidade. Sempre me aceitou como sou, como penso, não sem deixar de brincar com as minhas ideias e posições mais radicais.
Tenho pelo Professor Malaca enorme respeito, gratidão e amizade.
João Malaca Casteleiro foi professor catedrático da FLUL, diretor do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa e membro da Academia das Ciências de Lisboa (ACL). Presidiu durante muitos anos ao Departamento de Língua e Cultura Portuguesa (DLCP) da FLUL, extinto após a sua jubilação. Ocupou cargos e desempenhou funções de grande visibilidade e responsabilidade, mas não são estas as características que o definem.
Antes de mais, o Professor Malaca foi um homem bom e generoso, muito mais interessado no bem comum do que no seu próprio, um homem de ação, que sempre levou por diante os projetos em que acreditou, com coragem e determinação. Costumava dizer que “quem nada faz nunca é criticado” e esta frase define-o como académico e professor, mas também como cidadão e como pessoa.
Foi um homem simples e corajoso. Durante a Guerra Colonial foi condecorado pela sua bravura em combate, por ter sacrificado a sua integridade (e, se necessário fosse, a sua vida), para salvar a vida dos homens que comandava. Ao longo da sua vida nunca voltou as costas aos desafios, às criticas (tantas vezes infundadas e injustas), travando as suas batalhas pessoais e profissionais com desassombro, arrojo e até heroísmo.
Na sua relação com colegas e discípulos, seguia o lema “liberdade e responsabilidade”, expressão que usava com frequência.
Serviu com competência e abnegação as instituições onde trabalhou, a ACL e a FLUL principalmente, a ambas tendo deixado inestimável herança científica e, no caso da segunda, também pecuniária.
O seu contributo para o desenvolvimento, a difusão e a internacionalização da língua portuguesa foi inestimável. Foi pedra basilar da difusão do português em Macau e na China, granjeando o respeito e a amizade de autoridades macaenses e chinesas, e abrindo o caminho para as muitas formas de cooperação em língua portuguesa hoje em curso. No DLCP, foi responsável pela formação de alguns milhares de estrangeiros, que nesse departamento aprenderam ou aprofundaram os seus conhecimentos sobre a língua portuguesa e as culturas que nela se exprimem; foi também dos maiores responsáveis pela formação de muitos professores de português, como língua materna ou estrangeira ou segunda espalhados pelo mundo inteiro. Orientou inúmeras dissertações e teses, tendo sempre apoiado os seus alunos cientificamente, profissionalmente e também pessoalmente. Deixou-nos o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, que, apesar dos erros e inconsistências que lhe reconhecemos, é ainda hoje o dicionário estruturalmente mais conseguido, mais moderno e mais científico existente para o português europeu. A última obra que coordenou, o Dicionário da Língua Portuguesa Medieval, prestes a ser dada à estampa, vem preencher uma lacuna significativa na lexicografia portuguesa e fortalecer o conhecimento sobre a história do português. Contribuiu para a proposta de Acordo Ortográfico de 1986, que teve como maior erro o facto de ser fundamentada na linguística mais avançada da época, inovadora e radical, não tendo os seus autores percebido na altura que poucas coisas haverá mais conservadoras, ideológicas e elitistas do que a ortografia de uma língua. Foi um dos autores do texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 e um dos responsáveis pela sua aplicação, com a qual a língua portuguesa deu um passo de gigante na consolidação do seu estatuto de língua efetivamente comum de oito países, elo de união de povos de diferentes etnias, culturas e latitudes.
João Malaca Casteleiro não recebeu em vida o reconhecimento e a homenagem que lhe eram devidos, porque foi um homem íntegro, porque nunca foi pessoa de cultivar amizades interesseiras, nem de bajular ninguém, nem de vergar ou de se vender; e porque, infelizmente, as instituições e as pessoas que as dirigem são o que são. Pessoas com a inteireza e o denodo do Professor Malaca nunca são, nem poderiam ser, consensuais.
A língua portuguesa, una e forte, internacional e pluricêntrica, deve muito à sua visão e ao seu trabalho. Os seus discípulos, entre os quais me incluo, ficam agora órfãos mas fortes, com o dever indelével de preservar o seu legado e prosseguir a sua missão.
Muito obrigada por ter aceitado que eu fizesse parte da sua jornada e me contar entre os seus amigos.
Até sempre, Professor Malaca!
Cf. João Malaca Casteleiro (1936-2020) + João Malaca Casteleiro (1936-2020), o apelido do realizador do filme 1917, as variáveis de assimptota e o regionalismo escolateira + Agradecimento da família do filólogo João Malaca Casteleiro (1936-2020)