«O Brasil decidiu prolongar por algum tempo o período de transição para a vigência obrigatória do AO, mas manteve-o em vigor. Só isso. O que lemos em artigos inflamados [na imprensa portuguesa]? Que o Brasil suspendeu, recuou, cancelou e outras coisas semelhantes. Isto é sério?» As interrogações do professor universitário Carlos Reis, num artigo publicado no semanário Expresso de 9 de fevereiro de 2013.
Não cabe aqui o meu espanto por ver reacesa [em Portugal] a querela do Acordo Ortográfico (AO). Aumenta esse espanto quando pessoas que estimo e intelectualmente respeito enfileiram numa fúria contestatária baseada em argumentos parciais, desinformados e não raro tendenciosos.
Para nos entendermos, lembro factos. O AO foi firmado em 1990 pelos (então) sete países de língua oficial portuguesa; em 2004, Timor-Leste aderiu a ele. Que eu saiba, nenhum dos países foi coagido. De então para cá, a esmagadora maioria desses países tomou decisões jurídico-políticas de ratificação, o último dos quais (Moçambique) em junho do ano passado. Outros factos: no nosso sistema educativo o AO está em progressiva adoção, sem notícias de estragos de monta; na comunicação social está generalizada, salvo escassas exceções que confirmam a regra, a utilização do AO. Alguns números: em meados de 2012, dos dez jornais e revistas portugueses de maior circulação, oito usavam o AO; os dois que o não faziam ocupavam a antepenúltima e a penúltima posição, nesse índice de circulação. No caso das televisões, todas as de sinal aberto e praticamente todas as do cabo seguem o AO. E já não falo em documentos oficiais, no Diário da República, em incontáveis sites ou no facto de estarem publicados ou em vias de o ser os vocabulários ortográficos que alguns reclamavam com esgazeada ansiedade.
É isto significativo para desdramatizar (porque o que está em causa é uma dramatização) a questão do AO? Claro que sim. Aquilo que contribui para a estabilização possível do idioma e para a naturalização das suas mudanças é o uso disseminado, não as sensibilidades de quem tem acesso a caixas de ressonância disponíveis. O AO tem incongruências a reparar? Claro que tem. A grande notícia é esta: a nossa língua, já antes do AO de 1990, registava incongruências, no plano da grafia e noutros também. E as diferenças entre variantes nacionais existem noutros grandes idiomas (no inglês, no espanhol ou no francês) espalhados pelo mundo, os tais que não têm um acordo ortográfico, argumento que já tive oportunidade de desmontar. Essas são as limitações da congénita imperfeição que afeta produtos humanos como as línguas que falamos e escrevemos. Para atalhar a imperfeição regulamos a língua até onde isso é possível, sem que tal signifique mutilar singularidades. A ortografia é um dos domínios onde isso é feito, sempre (o passado mostra-o bem) com resistências, porque aí a mudança atinge a epiderme da língua (é uma metáfora, claro).
Voltámos a isto porque o Brasil decidiu prolongar por algum tempo o período de transição para a vigência obrigatória do AO, mas manteve-o em vigor. Só isso. O que lemos em artigos inflamados? Que o Brasil suspendeu, recuou, cancelou e outras coisas semelhantes. Isto é sério? Por mim, pude testemunhar, durante um ano em que vivi no Brasil, que o AO está bem e recomenda-se por aquelas terras. Foi generalizadamente adotado, não suscitou histerias, ninguém rasgou as vestes. Falta Angola, claro, esse país que alguns agora olham como um modelo de sensata democracia cultural. Pois bem: Angola acabará por aderir ao AO; talvez a recente decisão brasileira tenha a ver com isso mesmo, coisa em que deveríamos pensar, se em Portugal houvesse pensamento estratégico sobre a língua, em vez dos gritos lancinantes que só o fundamentalismo linguístico explica. Mas é assim que por cá se faz: se um magistrado não gosta do AO ou se uma mãe decide que o filhinho fica traumatizado por escrever ativar, é disso que se faz a notícia. Decididamente: um homem mordeu um cão.