Texto transcrito do semanário "Expresso" do dia 6 de maio de 2016, a respeito das declarações do presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, que, no decurso da sua visita oficial a Moçambique, considerou que uma eventual não ratificação por parte do parlamento deste país pode ser «uma oportunidade para repensar a matéria».
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
Quando o Acordo Ortográfico ficou concluído, estava Mário Soares no seu primeiro mandato como Presidente da República (1990). Anos de discussão depois, tendo passado por Belém Jorge Sampaio, foi no tempo de Cavaco Silva que o dito Acordo entrou em vigor. O que têm em comum estes três ex-Presidentes? Entre outras coisas, nunca se terem metido no assunto.
Entretanto, veio Marcelo e fez uma entrada a pés juntos. Costumamos dizer que Portugal é um país de loucos (e, se calhar, é mesmo), porque 26 anos depois da conclusão do AO a discussão mantém-se porque países como Angola e Moçambique não o ratificaram. Marcelo, que até agora tudo tem dito e feito para não entrar em conflito com ninguém, achou que a ortografia, uma mera representação do idioma, era uma bela coisa para se colocar em desacordo com o Governo. Fez mal, muito mal. E isto, independentemente do que cada um pensa sobre a ortografia.
Começou por fazer mal porque já milhares de crianças aprenderam a escrever de acordo com as novas regras; fez mal, porque mesmo que o AO fosse um erro, pior do que errar uma vez é errar duas; andar para trás dizendo agora a essas crianças que desaprendam o que aprenderem; dizendo a editoras e jornais que voltem a substituir as ferramentas de revisão; obrigando os que fazem da escrita profissão a mudar, de novo, a maneira de escrever, no momento em que começavam a estar habituados às novas regras.
Há praticamente 10 anos este jornal adotou o Acordo. No plano da imprensa, ficou de fora o Público por uma teimosia que pode ter muito garbo mas zero de eficácia. Apesar das incongruências (que, aliás, existiam também no antigo acordo); apesar de poder ser melhorado, não cabe ao Presidente da República levantar este tema. Nem é da sua competência política nem é politicamente avisado (sobretudo para quem está tão de acordo com tudo nas restantes matérias).
Acresce que Marcelo deu o pior dos argumentos: Angola e Moçambique não terem ratificado o AO. Ora, o português é um idioma que se fala onde? Eu sei que a resposta politicamente correta é: em Portugal. Mas a resposta real é: no Brasil. Marcelo seria útil se tentasse convencer aqueles dois países africanos da importância, também para eles, de uma norma comummente aceite. Mas fez o contrário. Não parece dele.
Texto transcrito do semanário Expresso do dia 6 de maio de 2016.