«(...) Aos pais, sugiro que conversem com os filhos e os ajudem a entender o mundo que os rodeia, seja em que língua ou variedade for. (...)»
Até aos 10 anos, vivi num ambiente linguístico peculiar. Os meus pais, portugueses emigrados na Venezuela, falavam um registo de contacto entre português e espanhol; a minha madrinha, brasileira do Nordeste emigrada na Venezuela, falava o seu registo de contacto. Não sei ao certo qual terá sido a primeira língua que falei, ou qual registo, mas sei que, aos 5 anos, fui alfabetizada em espanhol, língua que desde então tenho a certeza de falar. Entre os amigos da família havia falantes de português (portugueses e brasileiros, com vários sotaques) e falantes de castelhano (venezuelanos, espanhóis, cubanos, colombianos...), de galego, catalão, basco, de italiano, eu sei lá! Entre as colegas de escola havia quem falasse alemão, francês, inglês, iídiche. Cresci no meio de uma grande algaraviada! O resultado foi eu hoje falar e até ensinar português europeu e entender outras variedades do português; falar espanhol de variedade venezuelana e entender outras variedades; falar francês por o ter estudado por 12 anos e ter habilitação profissional para o ensinar como língua estrangeira; falar inglês, que aprendi no ensino básico e de que muito preciso para o exercício da profissão; falar italiano, que aprendi quase sem dar por isso, como se sempre tivesse estado dentro de mim.
Quando cheguei a Portugal, fui para a escola de uma aldeia da Beira Litoral, onde frequentei a 4.ª classe. A professora ficou muito aborrecida por eu entrar a meio do ano letivo e ser tão burra (ela dizia "buuurrra!") que nem sabia falar português nem percebia o que lhe diziam. Na escola havia umas meninas ainda mais burras que eu, porque, além de terem vindo do estrangeiro, eram muito mais pobres. Era assim em 1971. Que ainda hoje seja assim é inaceitável.
Vem isto a propósito de uma reportagem do DN, de 10 de novembro p.p., intitulada «Há crianças portuguesas que só falam "brasileiro"», instigadora de alarmismo social e fobias, a avaliar pela reação nas redes sociais. No texto grassa a ignorância e as asneiras são tantas que nem posso referi-las todas. Logo o título está errado. "Brasileiro" não existe (nem angolano, moçambicano ou africano), apenas português, vivo e de boa saúde, tal como não existe americano, sul-africano, indiano ou australiano, mas apenas inglês.
Ninguém em seu perfeito juízo ficaria aborrecido se o seu filho tivesse um colega, falante de inglês, que falasse português com sotaque; se o filho viesse para casa a dizer umas palavras ou expressões em língua inglesa, os pais até ficariam orgulhosos. Também não imagino pais a preocupar-se por os seus filhos começarem a falar inglês, seja de que país for, por exposição exagerada a produtos audiovisuais nessa língua. Contudo, conheço muitos relatos de crianças discriminadas na escola portuguesa por falar português de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné ou Moçambique; talvez seja por serem morenas, talvez por serem pobres.
Diz uma reportagem de O Globo online, de dia 16, que Luccas Neto «anunciou que passará a dublar os seus vídeos em português ... de Portugal». Alguém imagina a Disney a dobrar os seus filmes em inglês ... de Inglaterra? Imaginam as criancinhas inglesas a fazer terapia por falarem "americano"?
Haja bom senso! Aos pais, sugiro que conversem com os filhos e os ajudem a entender o mundo que os rodeia, seja em que língua ou variedade for. Aos professores, que se atualizem e leiam umas coisas sobre variação linguística, multilinguismo e multiculturalismo. A sociedade agradece. E as crianças também.
Artigo publicado no Diário de Notícias, no dia 22 de novembro.