« (...) Tal como hoje ninguém acredita que a Terra é plana ou que o Sol gira à volta dela, a evidência e a ciência se encarregarão de moldar as crenças, as atitudes e o comportamento em relação ao pluricentrismo do português.»
Nos últimos meses, dei comigo a refletir mais demoradamente sobre as crenças. Não, não foi impulso místico o que me levou a pensar no assunto, mas antes a perplexidade com que assisto à aparente convicção com que alguns governantes propalam ideias que contrariam a evidência e a ciência – e.g. o SARS-Cov 2 está controlado e em breve a pandemia estará resolvida; o uso de hidroxicloroquina ou o consumo de vodca previnem a COVID-19. Digo «aparente convicção» porque me custa acreditar que governantes de países creiam efetivamente no que dizem: provavelmente estou condicionada pela crença – justificada? – de que um governante é um indivíduo minimamente racional e inteligente.
Despertei para o assunto há cerca de dois anos, quando uma aluna escolheu para tema da sua dissertação as crenças dos alunos chineses e dos seus professores sobre a aprendizagem do português. Conhecer as crenças dos estudantes relativamente à aprendizagem é importante para auxiliar os professores a adotar estratégias mais adequadas e eficientes. Dei-me então conta do quanto o tema é importante para disciplinas tão distintas quanto a filosofia, a psicologia, a sociologia, as ciências políticas, as ciências da educação.
Muitas vezes as crenças são incompatíveis com o desenvolvimento da ciência e os indivíduos e as sociedades resistem a incorporar as novas descobertas científicas. A história está cheia de exemplos, como os de Galileu Galilei, forçado a renegar o heliocentrismo para não morrer às mãos da Inquisição, ou como o de Darwin e a sua teoria da evolução que, apesar de largamente aceite desde cedo pela comunidade científica, ainda hoje é contrariada pelo criacionismo, especialmente nos EUA.
As crenças são, de facto, fundamentos importantes das atitudes e do comportamento, mas podem ser extremamente difíceis de mudar. Com frequência, as pessoas manterão as suas crenças mesmo à luz de evidência contrária, perseverando na crença, até por considerarem que as suas crenças se baseiam em informação que é de algum modo lógica, convincente ou atrativa. Por isso políticos populistas são tão bem sucedidos na formação de opinião acientífica, como a inexistência de aquecimento global ou a relação entre as vacinas e o recrudescimento do autismo, mesmo entre pessoas cujo grau de escolaridade levaria a considerar imunes a contrassensos, fake news ou teorias da conspiração.
Se nos reportarmos às línguas, existem muitas crenças que, embora contrariadas há muito pela evidência dos factos e pela ciência linguística, ainda hoje fazem o seu caminho entre certas camadas sociais: a de que existem línguas melhores ou mais capazes que outras, a de que as línguas podem manter-se imutáveis e “puras”, a de que a nossa língua materna determina a forma como pensamos, a de que os preceitos recomendados por alguns puristas têm cientificidade e de que as variedades-padrão são linguisticamente mais corretas do que os outros dialetos...
No que respeita à língua portuguesa, perdura entre certa camada da população um conjunto particular de crenças, que se sustentam no passado colonial português e que, por seu turno, motivam comportamentos preconceituosos e xenófobos relativamente a variedades nacionais que não a portuguesa. Entre essas crenças contam-se a de que Portugal é o único dono da língua portuguesa, a de que a variedade brasileira difere da europeia por ter sido corrompida – e até de que foi tão corrompida que em rigor já não é português –, a de que a norma-padrão dos países africanos de língua portuguesa e de Timor-Leste é e será o português falado pelas classes cultas do eixo imaginário entre Lisboa e Coimbra, a de que o que falamos em Portugal é mais próximo do português “original” e de que esse “verdadeiro português” se manterá imune à corrupção de outros povos e outras línguas, tanto mais poderoso quanto mais conservador, isolado, imutável e fechado sobre si mesmo.
Será difícil certamente erradicar totalmente estas crenças da sociedade portuguesa, tanto mais que para os seus seguidores elas se sustentam em informação que consideram lógica, convincente e, sobretudo, atrativa. Mas tal como hoje ninguém acredita que a Terra é plana ou que o Sol gira à volta dela, a evidência e a ciência se encarregarão de moldar as crenças, as atitudes e o comportamento em relação ao pluricentrismo do português.
Artigo da autora publicado no Diário de Notícias de 4 de agosto de 2020.