«[...] O Acordo Ortográfico prevê que se perceba como é que ele foi implementado, que seja estudado e que seja melhorado." Já agora, convém dizer que o acordo não prevê nada disto. [...]»
E quando já ninguém o esperava, zás!: o malfadado Acordo Ortográfico aterrou nos debates eleitorais. Durou pouquíssimo tempo, cerca de 1 minuto e 15 segundos, mas ainda assim o suficiente para se perceber o que vai nas almas dos candidatos a deputados neste ano de 2022. Foi no fim do chamado “debate das rádios”, promovido em conjunto pela TSF, Rádio Renascença e Antena 1 na manhã de 20 de Janeiro, com a última pergunta de uma das jornalistas: “Acordo Ortográfico, sim ou não, rever?” Inês Sousa Real (PAN) disse que sim, porque «tem havido um grande desacordo em relação ao Acordo» e «esse debate deve ser reaberto». Sim, disse também Francisco Rodrigues dos Santos (CDS): «Está no nosso compromisso eleitoral rever o Acordo.» O mesmo repetiu João Cotrim de Figueiredo (IL): «Sim, rever o Acordo» Isto enquanto João Oliveira sublinhou que, pelo PCP, o assunto estaria arrumado (e adivinhamos isso desde que o então deputado Jorge Lemos rasgou o texto do AO90 no parlamento): «Por nós, há 16 anos que estava revisto, não só o tratado, mas o conteúdo do Acordo, que é sobretudo isso que interessa.»
Livre e Bloco foram menos económicos nas palavras. Rui Tavares veio carregar na tecla de que é «um tratado internacional, pode sempre ser revisto, pode ser melhorado» [e porque é que não foi, alguém explica?], enquanto Catarina Martins afirmou que o «Acordo prevê, ele próprio, que haja estudos e revisões ao longo do tempo. Portanto, se algum de nós estiver a dizer que não quer essa revisão, está a dizer que não quer o próprio Acordo. Ou seja, se calhar estamos a enganar-nos uns aos outros. O Acordo prevê que se perceba como é que ele foi implementado, que seja estudado e que seja melhorado.» Já agora, convém dizer que o acordo não prevê nada disto, nem nas bases nem na nota explicativa; nem há uma só palavra ou frase que o prove. Por fim, António Costa (PS), astuto, «lavou as mãos» do assunto: «Acho que o Acordo deve fazer o seu caminho.» «Portanto, quando for altura de o rever, deve ser revisto?», retorquiu a jornalista. Ao que Costa respondeu, com desarmante descaramento: «… como todos os acordos.» Fim.
A par disto, que sendo pouco é bastante significativo, temos os programas dos dez partidos que nas eleições anteriores garantiram representação parlamentar. Dois falam do Acordo Ortográfico (AO90), CDS e PSD; e dois estão escritos sem ele, mantendo a grafia de 1945: os do CDS e o da aliança PCP-PEV, embora neste último não haja nenhuma referência ao AO90. Também sem qualquer referência ao AO90 mas escritos seguindo aparentemente as regras deste, estão os do BE, IL, Livre, PAN e Chega. O PS, seguindo o AO90, faz-lhe uma referência indirecta ao propor-se «reforçar o papel da CPLP na projeção [sic] da língua e das culturas de língua portuguesa, apoiando designadamente a atividade [sic] do Instituto Internacional da Língua Portuguesa.» Augusto Santos Silva não se esqueceu do seu IILPezinho.
Bom, mas o que propõem CDS e PSD? O primeiro fala em «reverter o Acordo Ortográfico de 1990» e o segundo diz que «a tentativa da uniformização ortográfica não constituiu qualquer vantagem face ao mundo globalizado, pelo que o PSD defende a avaliação do real impacto do novo Acordo Ortográfico». O CDS propõe ainda (parecendo aceitar a óbvia diversidade do português) a «criação do Dicionário Universal da Língua Portuguesa e da Biblioteca Universal da Língua Portuguesa contendo entradas respeitantes às palavras usadas em todos os países de língua portuguesa, com o respectivo sentido e enquadramento gramatical». E é tudo.
Não, não é tudo. Graças ao AO90 e às suas trapalhadas de duplas grafias e facultatividades, temos nestas legislativas secções de voto, mas também “sessões” (como já se viu na RTP ou em câmaras como a do Barreiro) ou “seções”, grafia usada no Brasil, mas que em Portugal é considerada inexistente pela Academia das Ciências de Lisboa e pelo próprio IILP. Ainda assim, a Câmara de Torre de Moncorvo, por exemplo, não só usa “seções” referindo-se ao presente acto eleitoral como, talvez influenciada pela «caça às consoantes» que o Acordo promoveu, inventou este lindo termo: “sustituição”; e repetido três vezes seguidas!
É por estas e outras que Catarina Martins não errou ao dizer, no «debate das rádios», que «se calhar estamos a enganar-nos uns aos outros» (embora ela o tenha dito com outro sentido); tal como António Costa foi lapidar ao afirmar que «o Acordo deve fazer o seu caminho». Só que, para ele, esse caminho é o de eternizar-se no atoleiro de erros que criou, enquanto para largos milhares (não só em Portugal) esse caminho chegou ao fim. E já não há paciência para ele.
Artigo de opinião incluído na edição de 27 de janeiro de 2022 do jornal Público.