«(...) O caso brasileiro começa em 1922, com a Semana de Arte Moderna, em que pela primeira vez, na peugada do que Ronald de Carvalho tinha feito no tempo do Orpheu, a elite brasileira diz: nós somos nós e não nos venham falar em Portugal. (...)»
Nos anos 60, achava-se que uma deriva brasileira faria com que o Português no Brasil passasse a chamar-se Brasileiro. Foi esse medo que levou ao acordo de 90?
Isso é também o que diz o Dr. Santana Lopes. Mas as coisas estão clarificadas desde 1963, quando Celso Cunha publicou o famoso livrinho intitulado Língua Portuguesa e Realidade Brasileira, onde pela primeira vez aparece a sistematização muito completa entre sistema, norma e fala. E ele é o primeiro que diz: no Brasil fala-se o Português da norma brasileira! Por isso é que o nosso próximo colóquio se vai chamar Língua, Norma e Fala. Que é para nós nos entendermos.
Mas ao encararmos isso dessa maneira, um acordo torna-se inútil...
Completamente. Não podemos pensar que estamos a descobrir a pólvora. Os ingleses já a descobriram e os espanhóis também. Porque é que nem os ingleses nem os espanhóis (e os franceses muito menos, nesses então há um orgulho nacional que suplanta tudo) têm um acordo ortográfico? Há um sistema que é o mesmo. Depois, há as normas, e as normas vão tanto mais longe quanto maior for a fundamentação e a autonomia cultural de cada povo. O caso brasileiro começa em 1922, com a Semana de Arte Moderna, em que pela primeira vez, na peugada do que Ronald de Carvalho tinha feito no tempo do Orpheu, a elite brasileira diz: nós somos nós e não nos venham falar em Portugal.
O vocabulário brasileiro corrente é, aliás, muito diferente do português.
Mas isso é enriquecedor. Nunca percebi, por exemplo, porque é que Portugal silenciou o acto de independência cultural de Cabo Verde quando disse que iam ensinar o crioulo. Os portugueses deviam ter ficado satisfeitíssimos, por darem origem a uma nova língua. Mas não. Um povo que chama «o Camões» ao Instituto Camões é um povo que perdeu a dignidade. E essa gente d’«o Camões» está a passar uma mensagem perfeitamente utópica, irrealista, que não vai conduzir a nada senão à maior confusão. Que respeito tem merecido a Portugal a atitude angolana? Ora eles todos os dias inventam uma nova palavra, está-se a passar com Angola o que se passou com o Brasil. E nós continuamos a falar destas coisas como se o mundo tivesse parado.
No Brasil, um dos paladinos do acordo, Evanildo Bechara, escreveu que ele iria reduzir o custo da produção dos livros, facilitar a difusão bibliográfica e de novas tecnologias e aproximar as nações. Este acordo permite isso?
Não. Acho que isso é conversa fiada. São balelas. É balofo, vazio. Aliás, a esmagadora maioria da intelectualidade brasileira não aderiu. O Brasil, digo-o da minha experiência, não é um país que possa ser analisado com visões de tipo europeísta. O Brasil não vai cumprir seja o que for que não lhe interesse. Dizer que o Brasil cedeu alguma coisa é de uma hipocrisia total. Continua a pôr o acento em “assembléia”, em “idéia”...
Mas era importante que cedesse?
Não. Quando eu dei aulas no Brasil, escrevia à minha mulher em português europeu e fazia os testes em português do Brasil. Por isso é que essa tal utopia é uma falta de respeito pelas diferenças naturais que existem nos vários países de língua portuguesa. Nós falamos aqui em renovação do léxico, mas também podemos falar em problemas de ortofonia. A maneira de dizer as coisas tem muito a ver com a ortografia. Veja o que se passou com a palavra “prégão”, do latim praedicare, agora só se diz “pregão”, como se fosse um prego grande... No outro dia, uma ex-ministra da Cultura disse “sêrvo” em lugar de “sérvo”, portanto o cervo, de veado, invadiu o terreno dos servos de gleba!
Isso reconduz-nos à relevância da etimologia, não?
Claro, a etimologia faz falta. Porque é que nós, hoje, já dizemos “alcoolemia” em vez de “alcoolémia”? Porque os helenistas bateram-se pelo respeito pela etimologia! Também devíamos dizer “septicemia”, em vez de dizermos “septicémia”...
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico
in jornal Público do dia 12 de setembro de 2016. Respeitou-se a norma anterior ao Acordo Ortográfico seguida pelo jornal português.