« (…) É extremamente positivo e inteligente que o que o Portal das Matrículas do Ministério da Educação possa, de forma simples e fiável, ficar com um retrato do multilinguismo existente na escola pública portuguesa. Porém, qualquer medida administrativa reveste-se sempre de implicações políticas. Precisamente por isso é incompreensível que as demais línguas faladas em Portugal e nos países de língua oficial portuguesa sejam ocultadas num instrumento do ME com o impacto e a visibilidade que este tem. (…)»
A expansão de uma língua, geralmente a do poder, faz-se a expensas de outras, que deixam de ser transmitidas às gerações mais jovens, enfraquecem e acabam por se extinguir. Louis-Jean Calvet ilustra bem este facto na sua obra de divulgação sociolinguística, logo a partir do título: A guerra das línguas (La guerre des langues, em francês), infelizmente não traduzida para português.
O meu amor pela língua portuguesa não obnubila o respeito pelas demais línguas faladas nos países de língua oficial portuguesa. Ao contrário de Portugal (que só ultimamente tem despertado para o multilinguismo), estes jovens países têm na sua génese a coesão de etnias e línguas diferentes, e o português como argamassa. É multilíngue – não monolíngue – o Brasil, com todas as suas línguas ameríndias, de migração e de fronteira. São também multilíngues os países africanos de língua portuguesa. É multilíngue Timor-Leste.
O crescimento da língua portuguesa não pode ser feito à custa das demais línguas faladas nesses países, mas em parceria com elas, florescendo todas em conjunto, respeitando-se assim a identidade e as especificidades dos vários povos que falam português e trazendo mais cor, inteligência e sabedoria a todos nós. Se há crítica que se possa fazer às autoridades dos países de língua portuguesa, ela é precisamente a ausência de uma reflexão que tenha em conta não só a língua que nos une, mas também o multilinguismo que nos torna diversos.
Fiquei felicíssima quando um jovem pai me disse que o Portal das Matrículas (PM) do Ministério da Educação (ME) permitia indicar, por escolha numa lista, a língua materna das crianças. Como não tenho acesso ao PM, pedi-lhe que mo mostrasse, para poder maravilhar-me ao vivo. A experiência não foi, porém, tão bem-sucedida quanto previ.
Antes de mais, apenas pode escolher-se uma língua materna, i.e., pais de crianças que em casa falam mais de uma língua ficam obrigados a prescindir pelo menos de uma delas. Ficam fora da lista a língua gestual portuguesa, reconhecida oficialmente desde 1996, e também o mirandês, língua regional. Pode argumentar-se que não há assim tantas crianças surdas, que estas serão sinalizadas por outros meios, e que também não há tantas crianças falantes de mirandês. É verdade, mas não deixa de ser surpreendente que a língua cabo-verdiana ou crioulo de Cabo Verde não apareça como opção, nem o crioulo da Guiné-Bissau. Os crioulos ficam representados na lista, sim, mas pelo crioulo haitiano. Também estão ausentes da lista quase todas as línguas faladas nos países de língua portuguesa: encontrei o guarani, o tétum e pouco mais.
Muitas são as falhas e inconsistências da lista do PM que poderia mencionar, mas bem sei que é mais fácil dizer mal de uma coisa do que fazê-la. Opto então por criticar construtivamente.
É extremamente positivo e inteligente que o ME possa, de forma simples e fiável, ficar com um retrato do multilinguismo existente na escola pública portuguesa. Porém, qualquer medida administrativa reveste-se sempre de implicações políticas. Precisamente por isso é incompreensível que as demais línguas faladas em Portugal e nos países de língua oficial portuguesa sejam ocultadas num instrumento do ME com o impacto e a visibilidade que este tem. Sei que não é fácil prever todas as situações e línguas maternas possíveis, mas há algumas que têm que estar obrigatoriamente presentes. Além disso, há em Portugal técnicos disponíveis para colaborar na resolução deste problema.
artigo da autora publicado originalmente no Diário de Notícias do dia 2 de junho de 2020.