Na frase que nos transcreve, a de um excerto de «Emboscadas», o narrador passa-nos a imagem (depreciativa) de uma rua, incidindo a sua caracterização sobre três realidades que faz sobressair:
— os casinholos (evidenciando a marca do diminutivo para fazer sobressair o aspecto frágil, pobre e pequeno das casas; «de casinha + - olo» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004);
— as janelas;
— as chaminés.
Relativamente aos «casinholos de madeira», são-nos descritos como «assolapados ao longo da rua». O adjectivo e particípio passado «asssolapado» (ou «solapado») significa «aluído, escavado, abalado nas fundações, minado, que se solapou», o que nos passa a ideia de uma sequência de casas afundadas, aluídas ao longo da rua.
Ora, estes «casinholos» são-nos caracterizados como «indiscretos» em «Os casinholos […] seguiam-se indiscretos», sobressaindo daí a hipálage, figura de pensamento e figura de alteração semântica, que «consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado. Transposto na frase, o adjectivo aparece muito frequentemente nesta construção, ligando ao objecto uma característica moral pertencente ao sujeito. […]. A hipálage distingue-se da personificação, da sinestesia ou de outra figura de pensamento porque a primeira é concebida num segmento sintáctico que torna explícita a intenção estilística da transposição, não atribuindo novos significados às palavras. O efeito criativo é conseguido pela originalidade da construção, sem ambicionar outra representação mental da realidade a não ser aquela relacionada com o fenómeno psicológico ou com a ilusão de óptica» (Dicionário de Termos Literários). Com este recurso, o narrador atribui às casinholas as características das pessoas que as habitam, tal como Eça de Queirós fez com a expressão «pensativo cigarro».
Por sua vez, para representar as janelas, o narrador preferiu utilizar a expressão «os olhos baços das janelas», usando a metáfora (janelas como se fossem olhos; janelas = olhos), uma vez que não existe o termo de ligação (como), «mas sim uma fusão das duas realidades em presença» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 501).
Já para a descrição das chaminés — «enquanto as chaminés, de fasquias rotas e empenadas, golfavam de alto a baixo roscas pardas de fumo» —, estão presentes várias figuras de estilo:
— a personificação em «de fasquias rotas», uma vez que é atribuída uma característica (qualidade, comportamento ou atitude) humana — «rotas» — a «fasquia», que corresponde a «tira de madeira cerrada, comprida e estreita» (Grande Dicionário — Língua Portuguesa, ob. cit.);
— a metáfora em «as chaminés […] golfavam roscas […] de fumo», pois «golfar» implica «lançar às golfadas; jorrar», pressupondo a ideia de se expelir líquido (golfada = «líquido que se expele de uma vez»). Ora, a matéria das «roscas de fumo» não é líquida, mas uma mistura de gases, vapores e pó. Com esta metáfora, cria-se a ideia de movimento forte de algo que é lançado das chaminés;
— o pleonasmo em «as chaminés […] golfavam de alto a baixo roscas pardas de fumo», uma vez que há aqui várias repetições de ideias: as chaminés expelem fumo, e a cor do fumo é parda (pardo = «de cor intermédia entre o cinzento-escuro e o cinzento-claro». Tratando-se o pleonasmo de um «caso paradigmático no falar quotidiano (à semelhança de «subir para cima» ou «entrar para dentro»), poder-se-á considerar que se deva «tentar evitar esta figura da expressividade, [mas] não há dúvida de que ela deverá ser considerada como indispensável no dia-a-dia, como modo de intensificar um determinado conteúdo semântico» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in ob. cit., p. 496).
Tendo em conta o que foi dito, apesar de haver, também, hipálage, personificação e pleonasmo, a metáfora é a figura que predomina neste excerto (três metáforas: «olhos baços das janelas», «as chaminés golfavam roscas de fumo).