Para muitos, esta época é a altura ideal para balanços e passagem em revista dos momentos mais marcantes do ano que acabou. Se há quem prefira concentrar-se em novos objetivos e projetos, há também quem aproveite para rever os acontecimentos que acabaram por definir os últimos 365 dias. É nesta busca por um retrato da vida coletiva e individual que surgem as listas das palavras do ano, uma espécie de tentativa de atribuir significado aos episódios mais relevantes. E que palavra ou palavras definiram 2023? Essa é a pergunta que todos os anos a Porto Editora lança ao público com a eleição da Palavra do Ano. Todavia, se há anos em que a escolha é obvia pelo relevo que uma dada situação adquiriu, o ano que acabou certamente não é um deles. É que 2023 foi recheado de episódios inesquecíveis, um tanto caricatos e que acabaram por moldar a vida quotidiana de milhares de pessoas. E é, portanto, na tentativa de fixar a palavra que preferencialmente refere os acontecimentos que o Ciberdúvidas identificou e analisou, ao longo do ano, nas suas aberturas, as palavras mais usadas na comunicação social.
Instabilidade e pobreza foram as palavras que, para o Ciberdúvidas, marcaram o mês de janeiro. O ano começou com chuvas fortes e tempo adverso na região norte de Portugal, mas a situação política deste país, com demissões de ministros e secretários de Estado, e no Brasil, com a invasão do Palácio do Planalto por apoiantes do antigo presidente Jair Bolsonaro, também contribui para uma sensação de turbulência, sinónimo do termo instabilidade, definido no Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (DLPACL) como «qualidade do que varia ou muda com frequência». Para além disto, o aumento da inflação e das consequentes dificuldades económicas um pouco por todo o mundo trouxe para a ribalta a palavra pobreza, um vocábulo que evolui do latim pauper, que tinha o valor de «o que produz pouco» e que era usado para descrever um terreno agrícola ou o gado quando eram pouco férteis. Através dos tempos, o seu significado alargou-se e ajustou-se à descrição de situações de carência em geral, sobretudo económica.
Fevereiro foi caracterizado pelos verbos abusar e habitar. O primeiro relaciona-se com a apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica Portuguesa e tem como sentido possível «ter relações sexuais com alguém sem o seu consentimento» (DLPACL). A intensa discussão que este assunto gerou na esfera pública envolveu, não raro, o uso da construção «"foi abusado" sexualmente», não aceitável em português, na medida em que o verbo abusar não é transitivo direto, pelo que não aceita ser integrado numa frase passiva. Já o segundo verbo está associado à crise habitacional nos grandes centros urbanos e ao anúncio do pacote governamental dedicado à habitação. Habitar significa, nos dias de hoje, «ocupar um espaço, usando-o como residência, domicílio, local de habitação» (DLPACL), mas nem sempre teve esta aceção. Do ponto de vista histórico, sabe-se que habitar já ocorria no século XV, como termo certamente introduzido por via erudita, tendo resultado do vocábulo latino habĭto, «ter muitas vezes, trazer habitualmente» e «habitar, morar, residir», verbo que partilha o radical com haver, de habere, «ter, possuir, ser, estar senhor de, conter, encerrar, abranger, exibir», e com hábito, de habĭtus, «condição ou estado de algo; condição, hábito, aparência, compromisso».
Pedofilia e ismaelita foram as palavras de março. Ainda no seguimento das denúncias de abusos sexuais a menores no seio da Igreja Católica Portuguesa, apareceu com frequência a palavra pedofilia, que refere «a atração sexual de um adulto por crianças» ou a «prática de atos sexuais com crianças ou com quem ainda não atingiu a puberdade». Ismaelita foi também um outro termo que marcou este mês, por causa dos crimes ocorridos no Centro Ismaili de Lisboa, em 28 de março. Note-se que ismaelita refere «aqueles que são adeptos do ismaelismo» (Infopédia), ramo do xiismo, constituído no século VIII, cuja doutrina se fundamenta numa interpretação alegórica do Alcorão, sendo a única comunidade muçulmana liderada por um imã vivo e que atualmente é o Príncipe Aga Khan IV.
Em abril, destacou-se a palavra duodecavós a propósito do discurso de Chico Buarque na cerimónia que teve como intuito a entrega do Prémio Camões de 2019. Assinala-se que duodecavós, tem como variante dodecavós e significa «décimos segundos avós» (ou «duodécimos avós»). Trata-se de um vocábulo que pertence à série lexical dos graus de parentesco e é resultante da associação de formas numerais de origem grega, como por exemplo, pentavós, «quintos avós» ou hexavôs, «sextos avós».
Em maio, as palavras que se salientaram foram guerra e Galambagate. Guerra, eleita palavra do ano em 2022 pela Porto Editora, tem como um dos seus sentidos possíveis «conflito armado entre nações ou grupos sociais, relacionado com questões de natureza económica, territorial ou ideológica» (DLPACL) e voltou para os holofotes mediáticos em virtude da comemoração do Dia da Europa, assinalado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, com uma visita à Ucrânia, país que vive, no momento presente, um conflito armado com a Rússia. Já Galambagate é um termo relacionado com o escândalo político que, em Portugal, envolveu o antigo ministro das Infraestruturas, João Galamba, e os acontecimentos que tiveram lugar a 26 de abril, nas instalações do seu Ministério, envolvendo vários membros da sua equipa e que vieram juntar-se ao escândalo político da TAP, a transportadora aérea portuguesa. Esta palavra é o resultado da junção do apelido de João Galamba ao sufixo inglês -gate, o qual refere uma situação que causa choque público ou reprovação social. A forma sufixal -gate é abstraída de Watergate, nome do conjunto de edifícios que se situa em Washington, nos Estados Unidos, e que esteve no centro do escândalo político ocorrido na década de 1970 que levou à renúncia do presidente Richard Nixon.
Junho foi um mês marcado pelo adjetivo ultrafalso, possível tradução do vocábulo inglês deepfake, usado para descrever a forma como a inteligência artificial tem sido colocada ao serviço da criação de vídeos extremamente realistas, com o objetivo de manipular as afirmações de alguém ou mesmo determinadas situações, o que contribui para um processo de desinformação, que pode servir propósitos ideológicos ou mesmo políticos. Ultrafalso é formado pelo prefixo ultra-, com o valor de «grau extremo ou excessivo», que se associa a falso e pode servir para referir algo «que foi falsificado».
Em julho e agosto, o Ciberdúvidas fez a sua habitual pausa de verão nas atualizações regulares, retomando em setembro, mês que foi marcado pela palavra sismo e o neopronome elu. O grave sismo ocorrido em Marrocos, no início do mês, trouxe a discussão de várias palavras envolvidas neste campo lexical, entre elas sismo (forma preferida em português europeu) e terremoto (forma preferencial no português do Brasil e mais antiga que a anterior), palavras sinónimas que designam o movimento na superfície terrestre desencadeado por uma libertação súbita de energia. Já o neopronome elu ganhou destaque devido à polémica interrupção da apresentação do livro No meu Bairro, da autoria de Lúcia Vicente e ilustração de Tiago M., por um grupo de pessoas que se afirmavam contra o conteúdo desta publicação. A obra adota o sistema gramatical neutro ELU, que faculta formas neutras promotoras da inclusão de pessoas que não se identificam com o género masculino, conta a história de 12 crianças que têm em comum o facto de serem diferentes do que é considerado o padrão normal em sociedade.
No mês de outubro, os vocábulos salientes foram os adjetivos humanitário, em virtude da situação vivida na Faixa de Gaza, resultado do conflito armado iniciado neste mês entre Israel e o Hamas, e pipi, palavra usada pelo líder do Partido Social-Democrata, Luís Montenegro, para caracterizar o orçamento de Estado português para 2024. Ressalve-se que, no Ciberdúvidas, se recomenda a associação de humanitário a nomes que denotem ações para a proteção de pessoas: diz-se e escreve-se, portanto, «ajuda humanitária», «corredor humanitário», mas não "desastre humanitário". No que concerne a pipi, adjetivação inusitada, de tom jocoso e vulgar, que contrasta com a seriedade do tema político, foi muito comentada pela opinião pública.
Novembro foi o mês do vocábulo antecipada e do anglicismo influencer. A demissão do primeiro-ministro António Costa, em consequência das suspeitas levantadas pela Procuradoria-Geral da República a respeito de interferência nos processos de exploração de lítio e hidrogénio no país, a dissolução da Assembleia da República e a convocação de eleições legislativas antecipadas, para 10 de março de 2024, levaram a que o termo antecipado fosse frequentemente usado na esfera pública. Trata-se do uso adjetival do particípio passado de antecipar, verbo originário do latim anticipare, literalmente «tomar mais cedo», que se atesta em português a partir do século XV. Já o anglicismo influencer, nome dado à operação do Ministério Público, que investiga os negócios em torno da exploração de lítio e hidrogénio, tem na língua portuguesa um equivalente estável e já dicionarizado. O termo influencer é equivalente ao português influenciador, que pode ser usado ora como nome ora como adjetivo com o significado de «que ou quem influencia ou tem alguma espécie de influência sobre algo ou alguém» (Priberam).
Por fim, em dezembro, antes da habitual pausa de Natal, ainda houve tempo para o destaque da palavra apocalíptico, o termo mais pesquisado no dicionário em linha Priberam. Este adjetivo consiste na adaptação do grego apokaluptikós («que revela, que descobre») e corresponde ao nome apocalipse, o qual tem também origem grega e chegou ao português por via do latim tardio apocalypsis. Tem como sinónimo o nome catástrofe e uma forte conotação religiosa, uma vez que, no Novo Testamento, dá nome ao último livro, o que contém revelações e visões sobre o fim do mundo.
No fundo, as palavras que aqui apresentamos não sintetizam o ano de 2023, mas ajudarão, certamente, a construir uma perspetiva de alguns dos seus momentos mais marcantes.