A pergunta requer uma resposta extensa e pormenorizada, razão por que lhe vou pedir alguma paciência…
Começo por dar-lhe algumas referências onde pode encontrar a informação que procura, com todo o rigor: há um livro, publicado pela Oxford (e por isso em Inglês) de Maria Helena Mateus e Ernesto d’Andrade, cujo nome é The Phonology of Portuguese e que tem o inventário completo dos segmentos fonéticos do Português (Europeu e do Brasil). É provável que não o encontre facilmente, mas recomendo-lhe que se dirija a uma livraria mais completa e o encomende, ou então vá à Biblioteca Central da Faculdade de Letras (da Universidade de Lisboa), requisite-o e consulte-o. Há um outro livro, Introdução à Linguística Geral e Portuguesa (que neste momento está esgotado na editora, a Editorial Caminho), da autoria de Isabel Hub Faria, Emília Ribeiro Pedro, Inês Duarte e Carlos Gouveia, que tem o Alfabético Fonético Internacional, bem como o inventário dos símbolos fonéticos usados para o Português. Como está esgotado, poderá consultá-lo numa qualquer biblioteca. Por fim, recomendo-lhe a consulta da recentemente reeditada Gramática da Língua Portuguesa, Caminho – Colecção Universitária, Série Linguística –, da autoria de Maria Helena Mateus, Isabel Hub Faria, Inês Duarte, Ana Maria Brito e outras, a qual apresenta uma descrição completa e actual dos sons do Português (cf. Montra de Livros).
Depois disto, vamos então ao que lhe interessa…
O que me pede é uma relação de alguns dos sons e de algumas combinações de sons possíveis no Português (Europeu) – à área da Linguística que estuda as possíveis combinações fonéticas chama-se Fonotáctica.
Isso levanta o problema da representação desses mesmos sons, pois, como deve saber, o mesmo grafema pode representar diferentes sons, da mesma maneira que o mesmo som aparece grafado de modos distintos. Por exemplo, é o som i que está presente em ‘compreender’ e em ‘fita’ (grafado com e e com i), ao contrário do que acontece em ‘saco’ e ‘asa’, onde o grafema s representa dois sons diferentes.
Foi para desfazer esta ambiguidade que se criou o Alfabético Fonético Internacional (AFI ou IPA – International Phonetic Alphabet). Este tem o propósito de representar de modo unívoco e inequívoco os sons de todas as Línguas do Mundo. Trata-se, pois, de uma convenção internacional, onde cada Língua adopta os sons que lhe correspondem. O problema é que nem sempre é fácil aceder-lhe e é necessário um programa específico que instale as fontes (vá a http://www.sil.org/computing/fonts/Encore-ipa.html e descarregue-o no seu computador). É com base nele que vou procurar ajudá-la.
Antes de discriminar o inventário dos sons do Português gostava ainda de esclarecer uma questão, relacionada com a biunivocidade entre som-grafia: é habitual distinguir as designações de ‘grafema’ (ou seja, as letras) dos ‘fones’ (segmentos sonoros). Por exemplo, ao grafema < s > (convencionalmente representado entre < >) podem corresponder, em Português, os fones [s] ou [z] (entre [ ]).
O que me pareceu, no documento que nos enviou, é que há uma grande confusão entre grafemas e fones. A consulente representa sons com os mesmos grafemas de que se serve para escrever normalmente, razão por que pensei que fosse muito mais simples (e menos ambíguo) apresentar o símbolo fonético (a negrito) e, na mesma linha, a representação ortográfica correspondente (os grafemas, a sublinhado, na mesma linha)
Note-se que não é costume o Ciberdúvidas apresentar estas convenções e esta nomenclatura apenas porque a maior parte do público do sítio não está familiarizado com elas, o que poderia dar azo a incompreensões.
E depois disto (uff!), vamos ao ‘Sistema Fonético do Português (Europeu)’…
Consoantes
(Classificadas quanto ao modo de articulação*)
Oclusivas
- surdas
p pato
t tira
k cacto
- sonoras
b bata
d data
g gato
Oclusivas fricatizadas (produzidas sem oclusão total na passagem do ar, devido ao facto de estarem entre vogais)
β (beta) aba
ð (delta) dedo
ɤ (gama) mago
Oclusivas nasais
m mata
n nata
ɲ manha
Fricativas
- surdas
f fava
s saco
ʃ chave
- sonoras
v vaca
z zero
ʒ jardim
Líquidas
Laterais
l lata
ʎ (lambda) malha
ɫ (em final de sílaba) sal
Vibrantes
ɾ barco
R rato
Nota: as africadas que refere como tch, tz, dj e ks são, na verdade, dois segmentos sonoros diferentes, ou seja, respectivamente: [tʃ] (usado no Português do Brasil, em palavras como ‘tia’), [tz] (‘quartzo’), [dʒ] (‘dia’, no Português do Brasil) e [ks] (‘táxi’).
Vogais
(orais)
|
Não recuadas |
Recuadas |
|
Altas
|
i (tira) |
ɨ (menina) |
u (muro) |
Médias
|
e (medo) |
ɐ (pano) |
o (porco) |
Baixas
|
ɛ (tela) |
a (casa) |
ɔ (mola) |
|
Não arredondadas |
Arredondadas |
Orais
- tónicas
i tira
e medo
ɛ tela
ɐ pano
a casa
ɔ mola
o porco
u muro
- átonas
i atirar
u apurar
ɐ apanhou
ɨ menina
Nasais
- tónicas
ĩ cinto
ẽ sento
ɐ̃ mando (e não ÑG, como no exemplo que deu, em ‘manga’, já que é a vogal, e não a consoante, que é nasalizada).
õ tonto
ũ fundo
- átonas
ĩ fintar
Nota: a designação ‘velar’, que utiliza, está incorrecta naquele contexto, correspondendo à designação ‘recuada’.
Glides
(ou semivogais)
Nota: os ditongos em Português são sempre decrescentes, já que os crescentes (ou ‘falsos ditongos’) são passíveis de segmentação silábica (ou seja, de hiato, desfazendo a possibilidade de ditongo): por exemplo ‘miar’ pode ser um monossílabo ([mjaɾ]), se tiver um ditongo crescente, ou um dissílabo ([mi-aɾ], com hiato). Este facto está sobretudo relacionado com questões de velocidade de fala.
Porém, se tivermos em conta uma velocidade de fala elevada, todos os exemplos de ditongos crescentes (orais e nasais) que me deu estão correctos.
Relativamente aos tritongos, passa-se exactamente o mesmo. Na verdade eles são sempre uma combinação de pelo menos uma vogal com outra vogal e uma glide, ou uma vogal e duas glides, ou até três vogais. Como referi para os ditongos crescentes, os tritongos não são ‘naturais’ na Língua (como são os ditongos decrescentes), mas antes o resultado de uma velocidade de locução mais acelerada.
Importa também aqui distinguir dois conceitos: ‘consoante’, ‘vogal’ ou ‘glide’ são nomes dados a classes naturais de sons das Línguas; já as designações de ‘ditongo’ e tritongo’ são especificações dadas a combinações de sons (respectivamente, dois e três sons).
A partir do inventário que a seguir lhe apresento poderá ver os conjuntos que se podem fazer com vogais e glides, de modo a formar ditongos e tritongos. De qualquer maneira, saiba que as hipóteses de tritongos que me apresentou estão correctas.
Orais
j pai
- pode haver ditongos com as seguintes combinações
ɛj papéis (sempre em posição tónica)
ɐj lei (em posição átona ou tónica)
aj pai (em posição átona ou tónica)
ɔj rói (sempre em posição tónica)
oj boi (em posição átona ou tónica)
uj cuida (em posição átona ou tónica)
w pau
- pode haver ditongos com as seguintes combinações
iw riu (em posição átona e tónica)
ew meu (em posição átona e tónica)
ɛw céu (sempre em posição tónica)
ɐw saudade (em posição átona e tónica)
aw mau (em posição átona e tónica)
Nasais
j̃ mãe
- pode haver ditongos com as seguintes combinações
ɐ̃j̃ mãe (em posição tónica e átona)
õj̃ põe (sempre em posição tónica)
w̃ cão
- pode haver ditongos com as seguintes combinações
ãw̃ cão (em posição tónica e átona)
ũj̃ muito (sempre em posição tónica)
* - Há outro tipo de classificação (quanto ao ponto de articulação) e ainda outras nomenclaturas, que poderá ver na bibliografia que lhe recomendei. As designações aqui feitas correspondem a uma abordagem clássica (estruturalista) da Fonética.
N. E. – Sobre o Alfabeto Fonético Internacional (AFI) – também conhecido pela sua denominação em inglês, International Phonetic Alphabet (IPA) –, consultar o capítulo "Convenções e Transcrição Fonética – o Alfabeto Fonético Internacional" de A Pronúncia do Português Europeu (em linha no sítio do Instituto Camões) e, em inglês, as páginas da International Phonetic Association.