DÚVIDAS

Sobre as dificuldades na escrita

Desde sempre tive dificuldades ortográficas, desde o confundir g e j, u e o, ss e ç, z e s, entre outros. Na escola primária tentaram corrigir-me através de cópias, ditados e escrita n vezes da palavra onde falhava. Apercebi-me que comigo esse procedimento não funciona, apesar de concordar que para outras pessoas pode funcionar. Normalmente tento procurar sinónimos, mas é complicado, visto dar também erros nessas palavras, ou tiro dúvidas no dicionário ou prontuário, e quando escrevo ao computador uso o corrector ortográfico. Constato que a leitura de livros ajuda-me essencialmente a nível da redacção e não tanto da ortografia.

Penso que a minha dificuldade, e que será também a de muitos, está na forma diferente de o cérebro funcionar, que torna inadequados os meios tradicionais de lidar com este problema. Eis três exemplos:
– Perante uma palavra em dúvida, eu questiono-me do porquê de se escrever de uma maneira e não de outra. Por exemplo, a palavra «viajar»; de acordo com as regras usa-se um j porque está junto à vogal a, contudo usa-se g para ter o mesmo som j na palavra «viagem», porque está junto à vogal e; apesar de ver a regra no prontuário, não consigo decorar todas as regras para o emprego do g e do j, porque são várias e parecem ilógicas, ou seja, fazem-me questionar do porquê de a regra ser dessa forma e não de outra.
– apesar de falar correctamente os sons nhe e lhe, tenho alguma dificuldade em me lembrar de que, por exemplo, se determinou algures no tempo que o som lhe de «filho» se deveria traduzir na escrita por um l, seguido de um h e de um o.
– Muito raramente, dou por mim a trocar p por b, só porque são semelhantes na escrita, um tem risco para baixo, e o outro tem-no para cima.

Penso que da mesma forma que existem técnicas, exercícios para pessoas com dislexia, também devem existir exercícios fora dos tradicionais e apropriados a adultos que dão erros deste tipo.
O que busco são essas formas de treinar o cérebro de maneira a acabar com o que chega a ser uma tortura escrever à mão, dado dar tantos erros, e apesar de gostar de escrever.

Agradeço desde já a atenção dispensada, e peço desculpa de não ter sido mais sucinta.

Resposta

A sua pergunta corresponde, de facto, a duas vertentes:

– os critérios da ortografia portuguesa;
– as dificuldades na escrita.

Em relação ao primeiro ponto, é preciso esclarecer que a ortografia portuguesa concilia dois aspectos: por um lado, procura reflectir um modelo ou um padrão de pronúncia no espaço de língua portuguesa através de certas relações regulares entre sons e símbolos gráficos; por outro lado, conserva graficamente certas distinções que têm origem na história dos sons da língua e que hoje só se encontram em certas zonas de Portugal.

Desta forma, é possível saber com segurança que sons como [p] e [b] se escrevem respectivamente p em pata e b em bata. Do mesmo modo, a respeito da confusão entre lh e nh, trata-se de dígrafos que representam sons com alguma afinidade, pois, quanto ao seu ponto de articulação, estamos a falar de consoantes palatais. Mas quem escreve deve estar atento à diferença que, de facto, reside no modo de articulação: o lh de telha – e de filho – corresponde a uma consoante lateral, enquanto o nh de tenha é uma consoante nasal.

Contudo, não é infelizmente possível formular uma regra que explique por que razão «paço» se escreve com ç, e «passo», com ss, quando a grande maioria dos falantes de português sabe que ambas palavras têm a mesma forma fonética, isto é, são homófonas.
A única solução é a escolaridade e a cultura geral, as quais vão permitir saber que paço se escreve assim porque evoluiu da palavra latina ‘palatiu-‘, enquanto passo derivou do latim ‘passu-‘.

Também não é possível definir uma regra quanto aos usos de -s- e -z- entre vogais. Quer dizer que a diferença entre coser (uma saia) e cozer (batatas) só é semântica e gráfica, porque para a maioria dos falantes não é fonética nem fonológica. Neste plano, ou temos de recuar à Idade Média ou então pedimos a um falante do Nordeste de Portugal que pronuncie as palavras. A este nível, disléxicos e não-disléxicos parecem estar, à partida, todos em desvantagem, se não tiverem esse conhecimento e, no fundo, esse treino de escrita.

No primeiro caso apresentado na pergunta, acerca do uso de j e g para representar o som [], pode-se considerar que a regra se cumpre geralmente, seguindo a formulação da própria consulente: escreve-se j antes de a, o e u, mas usa-se g antes de e e i. Mas, porque a ortografia portuguesa não é inteiramente fonética, há excepções à regra, pois há palavras que têm j antes de e e i, como, por exemplo (ver Magnus Bergström e Neves Reis, Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Notícias, 2004, pág. 18):

granjear, porque deriva de granja;
intrujice, porque deriva de intrujar;
jeito e verbos derivados ou relacionados (trejeito, ajeitar, enjeitar, rejeitar);
jeira («terreno lavrado ao dia», «remuneração diária»), por questões etimológicas e de tradição ortográfica;
jibóia, pelos mesmos motivos de jeira;
laje, pelos mesmos motivos de jeira, e o seu derivado lajedo;
laranjeira, porque deriva de laranja;
lisonjeiro, porque deriva de lisonja;
lojista, porque deriva de loja,
majestade (cf. jeira);
pajé («feiticeiro, entre os índios do Brasil»; cf. jeira);
pajem (cf. jeira);
rijeza, porque deriva de rijo;
sabujice, porque deriva de sabujo;
sarjeta (cf. jeira).
– algumas formas do verbo viajar, se o radical viaj- for seguido de e, como no presente do conjuntivo/subjuntivo em «Viaje com segurança».

Quanto ao segundo ponto focado na pergunta, e pegando nas dificuldades que a consulente diz sentir, não me cabe a mim, nem me é permitido, fazer um diagnóstico. Apenas posso dar alguma informação sobre as dificuldades na leitura e na escrita (como a dislexia e a disgrafia), sobre bibliografia e sobre alguns sítios da Internet que me parecem idóneos.

Limitando-me à dislexia e à disgrafia, comecemos pela origem das palavras, formadas a partir da associação de elementos gregos: ‘dys’, «difícil» + ‘lexia’, «leitura», e ‘graphia’, «escrita». A respeito da sua definição, a perspectiva mais consensual na actualidade é de que a dislexia e a disgrafia correspondem a uma dificuldade em processar e reproduzir informação ligada ao reconhecimento das letras, dos sons e das relações entre ambos.
A dislexia e a disgrafia não são as únicas perturbações registadas ao nível da aprendizagem da leitura e da escrita; outras há que também estão a ser investigadas e requerem um acompanhamento muito estreito quer de crianças, quer de adultos com este problema.

De qualquer modo, e só para exemplificar, uma pessoa com dislexia/disgrafia pode achar difícil distinguir na escrita um t de um d, por exemplo, dado que os sons a que estas letras correspondem têm uma articulação muito semelhante, residindo a diferença em o primeiro ser uma consoante oclusiva dental surda, e o segundo, uma consoante também oclusiva dental mas sonora. A confusão entre as formas das letras também pode surgir: é frequente confundir-se p com b, justamente porque são letras que só diferem na direcção da “perninha” (para baixo no p, para cima no b).

Quanto a bibliografia, indico para já duas obras:

São Luís Castro e Inês Gomes, 2000. Dificuldades de Aprendizagem da Língua Materna, Lisboa: Universidade Aberta (tem informação sobre diferentes tipos de dificuldades na leitura e na escrita, com glossário e índice temático)
Helena Serra e Augusta Correia, 2005. Cadernos de Reeducação Pedagógica – Dislexia 4, Porto: Porto Editora (contém exercícios para alunos do ensino secundário)

Mesmo que a dificuldade da consulente não seja nem a dislexia, nem a disgrafia, aconselho-a ainda a procurar ajuda junto da Associação Portuguesa de Dislexia, a qual julgo poder orientá-la na despistagem desse problema. Igualmente úteis me parecem a informação dispensada pelo Portal da Dislexia, bem como a consulta do sítio da Associação Brasileira de Dislexia.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa