O betacismo – a vulgarmente chamada «troca do v pelo b», que é característica dos dialetos setentrionais de Portugal – é o resultado da evolução fonética dos casos apresentados na pergunta. Este tópico já foi abordado noutra resposta, mas as questões levantadas são de molde a retomá-lo.
Assim:
(a) o v de vinho, vizinho e voar (como o de velho ou vento) procedem do V latino consonântico – VINU-, VICINU-, VOLARE1 –, o qual deveria soar como o w inglês de wind («vento») ou woman («mulher»);
(b) o v de livro, olvidar e palavra recuam a B latino, consoante oclusiva sonora que sofreu um processo de fricatização, isto é, passou a produzir-se com fricção, geralmente entre vogais – CANTABAT > cantava –, ou entre vogal e consoante líquidas (p. ex. a consoante vibrante r) – LIBRE (de LIBER, A, UM) > livre –, assemelhando-se ao atual v de vencer.
Acontece, portanto, que dois sons diferentes do latim convergiram, no sistema galego-português, num mesmo som, que teria já a articulação labiodental do [v] do português contemporâneo e ou uma articulação bilabial -- transcreve-se com o símbolo [β] --, a que hoje tem geralmente o atual /b/ intervocálico que figura em "abalar"2.
A partir daqui, há duas teses:
Hipótese A. A troca do v pelo b,que é típica dos dialetos setentrionais portugueses, constitui um fenómeno de convergência de /v/ e /b/ com o resultado de ambos se pronunciarem [b] e, em certos contextos, [β], processo a que foi alheio o português padrão e os dialetos do centro e do sul que mantêm o contraste entre /v/ e /b/3.
Hipótese B. Nos dialetos galego-portugueses existia contraste fonológico entre o v de vinho e palavra – era uma consoante fricativa bilabial /β/ – e o b de bicho ou cabeça – a oclusiva /b/, realizada como consoante bilabial sonora. Existiria ainda um outro fonema, a fricativa labiodental /v/ como resultado de F latino (DEFENSA > devesa)4.
No português padrão e nos dialetos centro-meridionais, neutralizou-se a oposição /β/-/v/ num único fonema /v/, ou seja, prevaleceu a articulação labiodental, e este fonema passou até hoje a opor-se a /b/: daí que se diga escreva vento, livro e devesa, mas bicho.
Na Galiza e na maior parte da metade norte de Portugal, as neutralizações fonológicas fizeram-se de modo diferente: a oposição /β/-/v/ neutralizou-se a favor de /β/; depois o contraste entre /β/ e /b/ também se neutralizou a favor de /b/. Daí que boi e vaca tenham geralmente a mesma consoante inicial entre muitos falantes do Norte.
1 As formas VINU-, VICINU-, VOLARE representam os étimos, isto é, as formas dos vocábulos latinos (mais concretamente, do latim vulgar) que estão na origem das formas vocabulares portuguesas.
2 Esta realização não parece corrente nem em dialetos portugueses meridionais nem nos dialetos brasileiros. Cf. a resposta "O /d/ intervocálico no português de Portugal".
3 Cf. Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1982,p. 27.
4 Cf. Ramón Mariño Paz, Fonética e Fonoloxía Históricas da Lingua Galega, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 2017, pág. 375-382.