A complexa relação entre sociedade e linguagem tem sido foco de discussão e reflexão há já alguns séculos. Pelo menos desde o século XIX que esta ligação tem vindo a ser escrutinada. A linguagem, entendida como um reflexo do modo como as pessoas se organizam, torna-se inevitavelmente sensível às tensões pelas quais as comunidades passam. A reivindicação pela utilização de uma linguagem que pretende incluir minorias e grupos marginalizados é, essencialmente, tradução da forma como as sociedades atuais pensam e se organizam. É assunto frequente nos órgãos de comunicação social e outros fóruns de discussão pública a defesa do uso de uma linguagem inclusiva que está, sobretudo, alinhada com as teorias que discutem o papel da identidade sexual e de género.
A última desavença mediática relacionada com a linguagem inclusiva teve lugar no início do mês de novembro em França, quando o senado votou a favor de uma proposta que proíbe a utilização de termos menos marcados quanto ao género em documentos oficiais. No entanto, para se tornar lei, este projeto terá ainda de ser aprovado pela Assembleia Nacional. O partido de centro-direita que está por detrás desta proposta argumenta que o neopronome iel, resultado da junção de il (ele) e elle (ela) e que está registado no conceituado dicionário Le Petit Robert desde 2021, a par de outros esforços mais gerais na adequação da linguagem, como por exemplo a exclusão do masculino como forma neutra, fazem parte de uma «ideologia que põe em perigo a clareza [da língua francesa]». Também o presidente Emmanuel Macron defendeu que, em francês, «o masculino atua como neutro». Todavia, os ativistas assinalam que a prevalência da forma masculina como neutra tem efeitos na perceção e existência de outros grupos, como por exemplo, as mulheres e não-binários.
Este tipo de discussão não é exclusivo do mundo francófono. Na verdade, existem reflexões semelhantes um pouco por todo o mundo. No caso concreto do português, os debates sobre o uso da linguagem inclusiva têm sido bastante frequentes tanto no Brasil como em Portugal. Recentemente, a propósito da interrupção da apresentação do livro No meu Bairro, obra que adota o sistema gramatical neutro ELU, por um grupo de pessoas que se afirmavam contra o conteúdo desta publicação, a utilização, em português, de um sistema de linguagem neutro voltou às luzes da ribalta e à discussão pública. Em Portugal, ao contrário do que se verifica em França, o uso de uma linguagem inclusiva é recomendado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género(CIG), organismo oficial do governo português.
Quando se fala de linguagem inclusiva, são muitas as questões levantadas. Afinal, qual será a sua origem? Que tipo de propostas são apresentadas? E, no caso das línguas de género marcado, quais as implicações que um sistema de linguagem neutro tem nas palavras e na economia do discurso?
As origens do debate sobre a linguagem inclusiva
As questões de género e linguagem não são, ao contrário do que se possa pensar, um debate recente. Pensa-se que estas possam ter começado no período do iluminismo com a publicação da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, da escritora Olympe de Gouges (pseudónimo de Marie Gouze), como resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, denunciando que nesta publicação a mulher fora excluída do projeto de liberdade e igualdade dos revoltosos, já que os termos homem e cidadão descreviam, nesse importante documento, unicamente indivíduos masculinos.
Todavia, a expressão da problemática relativa ao género e à linguagem começou a ganhar maior destaque e amplitude na década de 60 do século passado, com o feminismo de segunda vaga nos Estados Unidos. Este movimento, para além de se debruçar sobre os problemas políticos e económicos das mulheres, também procurou discutir assuntos relacionados com a linguagem e o contributo desta para a invisibilidade da mulher em contextos coletivos. Este assunto rapidamente começou a ser discutido em alguns dos círculos mais proeminentes da linguística, tendo alcançado projeção científica com a publicação da obra Language and Woman’s Place de Robin Lakoff, aluna do reputado linguista Noam Chomsky. Neste texto, a autora denuncia conotações, expressões e construções linguísticas que dão conta da natureza sexista das sociedades e que contribuem para uma descrição da mulher como subserviente do homem.
Na tentativa de contrariar esta tendência, têm sido feitos esforços para equalizar o tratamento linguístico entre homens e mulheres, como por exemplo, a feminização de palavras que conceptualizavam papéis sociais que, em tempos, apenas eram reservados aos homens. Exemplo disso é a palavra juíza, que na tradição lexicográfica fora sendo registada apenas como nome masculino (juiz), refletindo o facto de este cargo ter sido, durante séculos, maioritariamente desempenhado por homens. O termo juíza, quando surgiu, provocou alguma resistência à sua aceitação, sendo que, desde o século XX, este vocábulo está registado nos dicionários.
A questão central relacionada com o uso do masculino, em línguas como o português, como marcador genérico para denotar referentes com géneros diferentes apresenta, segundo ativistas e alguns linguistas, problemas. O investigador João de Matos (Universidade NOVA de Lisboa) defende, em declarações ao jornal Público, que a utilização do masculino para referir grupos que não são compostos apenas por homens contribui para a conceptualização invisível de todos aqueles que não se identificam com este género. Também a socióloga Graça Abranches, no Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública1, considera que, no caso da igualdade de género, «a questão central é a substituição do masculino genérico ou, na designação de Maria Isabel Barreno, o ‘falso neutro’ – por formas não discriminatórias que respeitem o direito dos homens e mulheres à representação linguística da sua entidade e impliquem o reconhecimento de que nenhum dos dois sexos tem o exclusivo da representação geral da humanidade ou da cidadania» (pág. 13).
Nos dias de hoje, com a emergência da terceira vaga do feminismo, dos movimentos LGBTQIA+ e da teoria queer (relacionada com a identidade de género), têm sido discutidos e propostos sistemas gramaticais alternativos que tencionam adequar a linguagem de modo a possibilitar a inclusão no discurso de pessoas que se identificam com outros géneros, incluindo não só as mulheres, mas também quem não se identifica com o género feminino e masculino, como é o caso das pessoas não-binárias. No entanto, se no caso de línguas como o inglês, cujo género gramatical não é marcado, a discussão se centra sobretudo no uso de pronomes, em línguas de género marcado, como as românicas, as alterações apresentadas vão um pouco mais além, uma vez que também é necessário ter em atenção as partes das palavras (morfemas) com valor de género, o que torna o debate sobre a adoção de uma linguagem neutra e inclusiva complicado. Muitos, como a influente Académie Française, rejeitam muitas destas propostas de alteração da linguagem por considerarem que tais sugestões tornam a língua, sobretudo no plano da escrita, ilegível e criam obstáculos a pessoas com dislexia, disfasia e falantes estrangeiros, tornando-a, portanto, não mais inclusiva.
Propostas relativas à linguagem neutra e inclusiva
Nos últimos anos, têm sido apresentadas e discutidas várias estratégias discursivas que alteram a forma de comunicar com e sobre outras pessoas. No caso do português, na expressão escrita, há quem opte por recorrer a sinais como @ ou X no lugar das vogais finais quando se referem a um grupo composto por vários membros de diferentes géneros, por exemplo todxs, em vez de todos, ou car@s, em vez de caros. Todavia, existe uma enorme dificuldade em transpor o uso destes sinais para a oralidade. Verifica-se também a opção pelo uso de expressões que recorrem a termos flexionados tanto no género masculino como no feminino, como por exemplo, «Boa tarde, portugueses e portuguesas».
Encontra-se ainda outro tipo de recursos, como por exemplo, o sistema ELU, que propõe a adoção do sufixo -e, em vez de -a ou -o e o estabelecimento dos neopronomes elu, delu, nelu, aquelu. As propostas que visam à utilização deste tipo de pronomes não são um exclusivo das línguas românicas, como o francês e o português, também em alemão há quem opte pelo uso dos neopronomes sier ou xier ou, no caso do sueco, pelo termo hen (que já apresenta uma difusão significativa nos órgãos de comunicação social).
Apesar de sistemas gramaticais como o ELU já terem alguma disseminação, as formas propostas pela grande maioria são consideradas recentes e, por isso, muitas delas não se encontram sequer atestadas. Todavia, existindo uma mudança social no sentido de normalizar a diversidade, pode acontecer que a língua evolua quer neste sentido agora proposto quer no sentido de outra solução que resolva o problema da inclusão. Sobre isto, a professora e linguista, Antónia Coutinho, no discurso realizado na segunda apresentação da obra No meu Bairro, na Fundação José Saramago, na sequência do boicote feito à primeira apresentação, explica que «a língua muda, está constantemente em mudança; esse não é o problema. O que pode ser problema é que a língua não é suposta mudar por decisão – de grupos ou decisões pessoais. A língua muda através dos usos – na maior parte das vezes inconscientes». Portanto, só o tempo dirá se as propostas agora apresentadas no sentido de tornar a linguagem mais inclusiva e neutra passam a ter uso extensivo e chegam a ser normativas.
1. A partir deste documento, publicado em 2009, são apresentadas propostas mais recentes, como por exemplo, o Manual de Linguagem Inclusiva (2021), aprovado pelo Conselho Económico e Social (CES), ou o Guia para a Utilização da Linguagem Inclusiva (2023), da Universidade do Porto, que discute a utilização de uma linguagem neutra e inclusiva no meio académico.
Cf. A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”? + «Pessoas que menstruam». Governo concorda com DGS + O pânico woke