DÚVIDAS

Género não binário e concordância

Minhas dúvidas estão em volta de uma coisa que foi me ensinada no ensino fundamental e que eu diversas vezes presenciei: que, quando numa sala cheia de "garotas" e com somente um "garoto", os termos corretos a se dizer são sempre no masculino, por ex., «todos vocês».

Logo, se há mais de um gênero de pessoas num mesmo espaço, é obrigação do enunciador dizer os termos em masculino.

Isso não implica que o gênero masculino é também, em determinadas circunstâncias, o termo neutro da língua portuguesa?

Logo, mesmo me referindo a um grupo formado somente por não-binários e mulheres, o correto termo a usar é “eles”.

Então, o termo neutro da língua portuguesa, (pelo que eu entendo ser o “elus”), só pode ser usado para se referir a um grupo de não-binários, e não a todos os gêneros que forma o espectro?

Seria tudo isso correto, ou o uso do masculino, quando se fala com o público geral, é só um sinal do machismo/misoginia na língua portuguesa?

Resposta

A pergunta foca vários aspetos e, por isso, exige uma resposta repartida que os aborde. 

De facto, o género masculino deve ser usado quando se pretende referir um grupo composto por homens, mulheres e, até mesmo, não-binários, uma vez que, de acordo com a gramática, no plural, as formas do masculino são entendidas como não marcadas, tal como afirmam Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 250). Por esta razão, embora a gramática tradicional não equacione diferentes géneros como o neutro (tal como ocorre no latim) ou o não-binário, o género masculino é a forma não marcada que denota referentes com géneros diferentes. 

Contudo, alguns apologistas da linguagem inclusiva optam por, na expressão escrita, recorrer a sinais como @ ou X quando se referem a um grupo composto por vários membros de diferentes géneros, como por exemplo: 

(1) Bom dia a tod@s

(2) Carxs alunxs

Todavia, dada a dificuldade em transpor o uso destes sinais para a oralidade, verifica-se também a opção pelo uso de expressões que recorrem a termos flexionados tanto no género masculino como no feminino, como por exemplo:

(3) Boa tarde, portugueses e portuguesas. 

É preciso ter em atenção que o género gramatical nada tem que ver com o género biológico, uma vez que, do ponto de vista gramatical, o género é uma categoria lexical usada para classificar os nomes (p. e., nomes do género masculino; nomes do género feminino; nomes comuns de dois, etc.), sendo que palavras de outras classes (p.e., adjetivos ou pronomes) que estabelecem com o nome relações de concordância, são igualmente marcadas quanto ao valor de género.

No que concerne ao uso de pronomes neutros, não está atestado na língua portuguesa contemporânea o género neutro no sistema de pronomes pessoais, o que sugere que formas como “elu”, “elus” ou outras são criações recentes na língua, muitas vezes pontuais, assistemáticas e, portanto, geralmente ausentes dos dicionários. Não obstante, recentemente, o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo (Brasil), aquando da sua reabertura, utilizou-se o vocábulo “todes” como forma de defesa de uma linguagem mais inclusiva. Também, há relativamente pouco tempo, o dicionário francês Le Petit Robert causou polémica por introduzir o pronome neutro “iel” na sua edição em linha de outubro de 2021.

Contudo, é preciso ter consciência que a criação e introdução consciente e planeada de pronomes neutros em línguas como o português tem ainda um longo caminho a percorrer. Havendo uma mudança social, parece inevitável que a língua evolua de modo a dar conta dessa mudança. Apenas o tempo dirá se pronomes neutros como “elus” passam a ter uso extensivo e chegam a ser normativos.

 

Cf. Glossário de gênero + O que é Cisgênero (e o que significa Homem Cis e Mulher Cis)

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