« (...) Embora historicamente as línguas evoluam sobretudo pelo uso, também é possível convencionar alterações. (...) »
Numa sala com dez, cem ou mil mulheres, basta entrar um homem para o todas passar a todos, elas virar eles, amigas ser amigos. A língua portuguesa evoluiu assim, mas faz sentido ser assim?
«A linguagem é um reflexo da sociedade em que nós vivemos e, se apagamos pronomes femininos, estamos também a apagar pessoas», argumenta Ary Zara (ele). «Esta seria a primeira luta: dentro deste sistema que foi criado binário, nós conseguirmos pelo menos incluir os dois géneros que são aceites legalmente.»
Mas a linguagem inclusiva é mais que isto, defende o ativista. É «olhar em redor e conseguirmos incluir o maior número de pessoas e utilizar as palavras corretas que não as agridam quando nos referimos a elas.»
E acrescenta: «Não sei se alguma vez [a linguagem neutra] terá lugar na nossa língua, porque existe um grande apego. É quase um patriotismo, um nacionalismo que eu não consigo compreender. Nós não somos as mesmas pessoas que éramos há 20 anos. Portugal está um país diferente. Nós temos cada vez mais pessoas de todas as partes do mundo, pessoas com diferentes identidades e a língua deve servir todas as pessoas. A língua não deve servir uma terra ou apenas um passado.»
Por isso defende a necessidade de «uma mudança» que permita «refletir a sociedade em que nos enquadramos». Para que pessoas como histórias como a sua, para quem adotar um pronome é um processo, também se revejam na língua que falam todos os dias.
«Quando nasci decidiram que eu deveria ser mulher e sempre fui tratado com pronomes femininos. Quando comecei a estudar mais o género a nível social, comecei a perceber que se calhar outros pronomes eram mais confortáveis para mim.«
Há cerca de sete anos, Ary Zara tentou utilizar pronomes neutros. «Acabei por abandonar, porque acabava por ser uma dificuldade ainda maior. Eu via as pessoas a lutar para conseguirem corresponder e isso também me deixava desconfortável. E então acabei por adoptar pronomes masculinos, por se enquadrarem mais com a imagem que eu apresentava, mas nem por isso com o meu género.»
A discussão sobre a linguagem inclusiva não é exclusiva a Portugal. No Brasil, ainda esta semana, instalou-se a polémica em torno do cantor Djavan, por supostamente ter usado linguagem neutra na promoção dos seus concertos. Tratava-se, afinal, de um anúncio escrito em catalão, por o concerto ser em Barcelona. Neste eram referidas «últimes entrades», anunciando os últimos bilhetes disponíveis para o espetáculo. Também no mundo anglo-saxónico, o pronome they é cada vez mais frequentemente utilizado como pronome neutro.
Mas que espaço há na língua portuguesa para mudança? Para mais inclusão? O Expresso foi ouvir especialistas em linguística sobre este assunto.
1. Há consenso entre especialistas sobre a linguagem inclusiva?
Nem por isso, dizem-nos o investigador e a investigadora ouvidos pelo Expresso. «Esta questão talvez tenha tido mais mais um destaque nos últimos anos, mas é uma questão que não é nova e questões deste género sempre existiram na no debate sobre a utilização da linguagem», diz Rui Sousa Silva (ele), coordenador do Centro de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
«Há sensibilidades diferentes», até porque existem diversas «conceções do que é a linguagem», corrobora Maria Antónia Coutinho (ela), investigadora do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa (CLUNL). O especialista e a especialista ouvidos pelo Expresso, por exemplo, abordam a linguagem pela sua vertente social e pela forma como a linguagem surge aplicada.
«Há quem diga que esta questão não faz sentido, que não é importante. Há linguistas que dizem que a questão da língua não tem nada a ver com as preocupações sociais. Há quem diga que há muitos problemas de desigualdades e que a linguagem não é o mais importante. É evidente que há problemas mais graves. Isso não significa que não nos preocupemos com outros que são muito importantes, na medida em que reiteram estereótipos e perpetuam-nos ao criarem uma invisibilidade total», defende a investigadora do CLUNL.
Do ponto de vista do que é a gramática do português, a questão é inequívoca. O que vem nos manuais é que existem dois géneros – feminino e masculino – e é o segundo que deve ser utilizado como genérico.
«Temos aquilo que nós aprendemos na escola, que é uma certa imposição da norma da língua, mas nós sabemos que a linguagem é muito mais do que a norma», defende Rui Sousa Silva. A língua tem vários registos, argumenta. Na oralidade, as pessoas utilizam a língua de forma diferente da escrita. O registo formal de uma conversa é muito diferente do informal. Utilizar um registo fora do contexto causa até estranheza.
«A gramática prescritiva, que é aquela que nos diz quais são as normas, é bastante conservadora, mas todos os dias vemos prevaricação (termo técnico da linguística) e ninguém é condenado por isso. Faz parte do processo natural da linguagem.»
E por isso, diz Rui Sousa Silva, as discussões sobre o uso da linguagem são uma questão que permanece sempre em aberto. «Do ponto de vista científico, a discussão naturalmente não se vai esgotar aqui.» O debate começou por um questionamento sobre a imposição do masculino sobre o feminino enquanto o genérico, «mas agora estamos a perceber que este binarismo não resolve todos os problemas», explica. Por isso, é natural que com as próprias mudanças da sociedade, surjam novas questões.
2. O masculino genérico é irremediavelmente a norma? Ou há espaço para mudança?
Pensemos novamente no exemplo de uma sala cheia de mulheres onde basta entrar um homem para mudar as marcações de género do discurso. «Não há aqui nada que justifique assim seja. Quer dizer, quando muito seria lógico pensarmos, por exemplo, na maioria que está na sala ou usar igualmente o feminino como feminino neutro», considera Rui Sousa Silva. «Mas não é isso que acontece. Definiu-se que num grupo de pessoas – sejam dez, cem ou mil – se existir um homem, é necessário utilizar o masculino. Portanto, temos aqui algumas questões que têm a ver com a evolução da linguagem em si. Mas, na minha opinião, a evolução da linguagem não está dissociada da evolução social e dos valores sociais que são implementados por um determinado grupo social. Quero com isto dizer que a linguagem é aquilo que a sociedade faz dela.»
Maria Antónia Coutinho corrobora. É um facto inegável que «línguas mudam constantemente» e «mudam sempre por influência de ação de quem as fala». O facto de português ter hoje marcações diferentes daquelas que teve nas suas formas mais arcaicas e no latim, de onde se origina, faz com que «também não seja garantido que tenha que ser sempre» como é hoje.
Em geral, acrescenta a investigadora, a língua «muda por circunstâncias em que não há uma consciência explícita. Na passagem do latim para as línguas românicas, as pessoas usaram aquela língua, foram adaptando-a sem uma consciência explícita de estar a evoluir para outra língua».
A diferença na presente discussão é que «há uma consciência explícita» sobre o tema que «leva a que quem usa esta ou aquela língua se interrogue até que ponto é que a língua permite ser expressões inclusivas», explica a especialista.
E elabora: «Os usos da língua espelham questões sociais. Não é a língua em si mesma que é ou deixa de ser sexista. A língua é uma construção histórica e social com a sua estruturação própria. Se eu quero integrar no meu discurso uma perspetiva mais inclusiva, sou eu que tenho que encontrar as formas através das quais a língua me permite fazer esse uso inclusivo. E a língua permite sempre a quem fala dizer o que quer.»
3. Inclusividade e neutralidade é a mesma coisa?
Mas passar da teoria à prática acarreta muitos desafios.
No dia a dia, Rui Sousa Silva já evita usar o masculino genérico numa tentativa de ser mais inclusivo. Quando escreve um email dirigido às pessoas que frequentam as suas aulas, começa por «caras e caros estudantes» em vez de «alunos» ou «alunas». «Mas se nós pensarmos bem, em termos de género, isto não resolve o problema. Continua a ser binário. E quando nós falamos de género, o género é muito mais do que isto. Há muitas mais identidades de género que não se reveem neste binarismo do masculino/feminino.»
E defende: «Enquanto falantes da língua, cada falante da língua, seja qual for o seu género, tem o direito de rever-se na linguagem que usa, e isso é algo que está muito difícil de materializar.»
«A identidade de género é muito fluída e ela materializa-se de variadas formas. Isto obriga a que se reflita também sobre a linguagem, porque a linguagem é usada para as materializar. Portanto, tem que dar resposta àquelas que são as nossas necessidades sociais.»
Para dar resposta à questão – e criar mais neutralidade na língua – surgiram os pronomes “eli” e “elu”, uma alternativa para quem não se identifica com ele ou ela.
Existem várias propostas, mas é impossível fazer “futurologia” e prever que soluções se vão estabilizar e passar a ser de uso comum, explica Maria Antónia Coutinho. Também a professora da Universidade Nova de Lisboa assume falar «com cuidado», tendo-se tornado “habitual” evitar expressões como «os falantes», muito comum nos textos académicos sobre linguística, preferindo antes referir-se a «pessoas que falam a língua», por permitir dizer o mesmo e eliminar as marcas de género.
«É bastante consensual que a língua muda através dos usos. Há elementos que estão a concorrer e a certa altura um deles estabiliza-se. Vai depender muito daquilo que forem as decisões e a margem de envolvimento das pessoas no sentido de fazerem um uso de tal forma significativo que, de alguma forma, isso tenha impacto em algum momento da história da língua.»
Contudo, deixa um alerta: a existência de um género neutro não garante necessariamente que seja no sentido da inclusão. O latim tinha um terceiro género, o illud, que apesar de não marcar género era usado para os escravos e refletia uma desumanização da pessoa que era referida. Atualmente, o inglês também tem um terceiro género consagrado na gramática, o it, que é utilizado para tudo menos para referir pessoas.
«Há um trabalho a fazer, uma reflexão sobre o que se quer dizer e a forma como se quer dizer. Se os contextos de uso afetam a forma como nós usamos a língua e se [adaptamos a linguagem] em alguns contextos, portanto, também podemos fazê-lo a propósito desta questão da inclusão.»
4. Que outras soluções existem para criar mais neutralidade na Língua Portuguesa?
Embora seja difícil fazer “futurologia” sobre a evolução da língua, é ainda assim possível olhar para as várias soluções que têm sido testadas nas últimas décadas e perceber quais as mais “sustentáveis” e “viáveis”.
«E tem havido de facto várias tentativas», comenta Rui Sousa Silva. «O português do Brasil está constantemente a implementar nesse sentido, a integrar neo-pronomes. A sociedade brasileira é muito mais ativa, para não dizer ativista, do que nós.»
Exemplos disto são as propostas que começaram a surgir nos anos 90 para substituir as terminações em a e o dos nomes por x ou @ de forma a eliminar as marcações de género. Por exemplo, o genérico amigos passaria a “amig@s” ou “amigxs”.
«Todas estas formas de materialização são tentativas de neutralizar a linguagem. O problema é que, do ponto de vista fonológico e fonético, não funcionam. E como não funcionam, as pessoas não usam. Se não usam, não são integradas na linguagem de uma determinada sociedade. E é isso que temos visto no Brasil. Tem havido uma grande produtividade em matéria de neopronomes e, ao fim de algum tempo, todos eles caem. Nenhum deles é integrado na linguagem do dia a dia.»
Em alternativa, soluções como a substituição pelo e permitem eliminar marcações de género sem «colidir com estrutura do sistema da Língua Portuguesa», explica Maria Antónia Coutinho.
Por exemplo, “amigues” é pronunciável e não afeta a estrutura fonológica da língua portuguesa. Por soar mais natural, pode ser mais “viável” e “sustentável”.
5. E se a mudança vier por decreto-lei?
Embora historicamente as línguas evoluam sobretudo pelo uso, também é possível convencionar alterações. O acordo ortográfico de 1990 é prova disso. Será então possível decretar mais inclusão na língua?
«Seria perfeitamente possível, se houvesse uma intenção de o fazer. Mas veja-se, na questão do acordo ortográfico, há quantos anos nós andamos debatê-lo. Isto dá-nos uma ideia de quão difícil é implementar alterações por decreto», expõe Rui Sousa Silva.
«A língua muda no dia a dia e de certa forma, muda naturalmente. Aquilo que se usa cada vez mais e aquilo que cai em desuso é fruto da nossa interação social. Quando se faz por decreto, está-se a implementar formas de utilizar a língua. O motivo pelo qual nós precisamos de tantos anos para chegar, finalmente, a um ponto em que de forma mais ou menos generalizada, já se usa sobretudo o novo acordo ortográfico, foi porque foi preciso várias gerações para chegarmos aqui.»
E conclui: «As alterações que foram feitas, foram impostas. E tudo aquilo que é imposto exige algum tempo para que os falantes da língua possam adaptar-se a isso.»
Para já, o que existe são recomendações. «A própria Comissão Europeia e o Parlamento [português] definiram medidas para incentivar a utilização de linguagem neutra. E o que nós vemos na prática é que nem as próprias instituições o fazem. Ou seja, existem as recomendações, mas não estão a ser implementadas em larga escala.»
Maria Antónia Coutinho concorda. «As línguas só morrem de morte matada. Isto é, as línguas só morrem por razões políticas quando são abafadas e impedidas de funcionar. De resto, as línguas mudam, transformam-se, evoluem sempre. Desse ponto de vista, é uma questão de cidadania que eu, como cidadã, posso usar a língua para falar do mundo e de um real que eu quero que seja mais inclusivo do que aquilo que conhecemos até hoje.»
Cf. A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”? + O pânico woke
Textor da jornalista Rita Monarca Almeida publicado na edição digital do semanário Expresso em 30 de junho de 2023.