«(...) O rolar incessante dos eufemismos mostra os limites das manobras linguísticas para mudar o mundo. (...)»
No dia 1 de maio, Jordan Neely, um sem-abrigo a viver nas ruas de Nova Iorque, entrou no metro a gritar que tinha fome e estava disposto a morrer, enquanto atirava lixo aos outros passageiros. No meio da confusão, foi imobilizado por um ex-marine, Daniel Penny. Quando a polícia chegou, Neely, um negro de 30 anos, mais conhecido pelas suas imitações do Michael Jackson, tinha morrido, sufocado pelas mãos muito brancas de Penny.
Enquanto discutem se Penny é um assassino ou um herói, todos concordam que o sistema falhou a Neely, na lista dos sem-abrigo mais necessitados de assistência desde 2019. Quem tenha seguido o debate pode, como eu, ter estranhado o sumiço do tradicional homeless para designar os sem-abrigo, substituído por houseless e unhoused. Até perceber que o problema não era com a língua inglesa, mas com a última atualização da novilíngua: como a palavra atingiu o seu prazo de validade, há que a apear do tapete rolante da linguagem inclusiva e meter lá uma expressão nova.
A imagem de uma rotação infinita de eufemismos para explicar as vagas sucessivas de vocabulário sempre que falamos em oprimidos e desvalidos foi cunhada por Steven Pinker nos anos 90. Cheios de boas intenções, arranjamos nomes acabados de estrear, limpos de preconceitos e estigmas. Só que esses eufemismos, obrigados a aderir à realidade, vão ficando manchados por associação. Alguém repara que começa a apresentar sinais de deterioração e troca-o rapidamente por um modelo mais recente.
O rolar incessante dos eufemismos mostra os limites das manobras linguísticas para mudar o mundo. Não há roupa que não acabe encardida quando é usada por pessoas de carne e osso e as suas vidas continuam iguais. A palavra sem-abrigo começou a cheirar tão mal como os vagabundos, pedintes e outros meliantes cujo lugar ocupou no passado, tornando impossível o seu uso entre gente civilizada.
Na realidade, um eufemismo serve sobretudo para nós próprios. Dizemos que alguém partiu porque não nos apetece ser confrontados com a morte. Falar em apoio às famílias mais vulneráveis é uma forma de esconder os indigentes menos apresentáveis. Não abrange a mulher de idade incerta que dorme na entrada do prédio, nos insulta diariamente e não deve ver água desde o tempo da troika. «Tirem-no daqui porque isto é muito desagradável» é o nosso primeiro instinto perante um sem-abrigo que invade uma carruagem de metro aos berros. «Tirem isto daqui porque dito assim é muito desagradável» também é o que fazemos quando desinfetamos a linguagem da miséria que tem a mania de sujar tudo e dos marginais que só desarrumam.
Enquanto zelamos pela boa higiene lexical, os problemas reais dos mais miseráveis correm o risco de ficarem perdidos lá mais ao longe. «Uma pessoa com rendimentos baixos» não anda por aí aos caídos; não se justifica gastar tanto dinheiro para garantir um teto em cima de todas as cabeças. Os delinquentes acabados de sair da cadeia vão arranjar emprego mal se perceba que foram apenas «impactados pelo sistema judicial». Este «não domiciliado» que alterna entre um vão de escada e um banco de jardim tem aí o seu «sistema de habitação informal», um lar tão válido como uma moradia de betão.
Podemos dormir descansados, toda esta gente devidamente renomeada não nos vai incomodar. As palavras que contam as suas histórias vão continuar a fazer acrobacias em cima da passadeira dos eufemismos. Até caírem para o lado de exaustão por estarem sempre a dar de caras com uma realidade que ninguém parece estar muito empenhado em mudar.
Cf. As Eugénias também têm apelido + A polémica expressão «pessoas que menstruam» + A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”?