A propósito do dia mundial contra a pobreza, a TSF [Rádio Notícias] publicou [em 18/11/2018] uma reportagem no seu website com o título "Dois milhões e meio de portugueses vivem em ditadura porque são pobres". No corpo da notícia há também um subtítulo que diz «a ditadura da pobreza».
De acordo com este título ser pobre é o mesmo que viver em ditadura. E de acordo com o subtítulo a pobreza institui a ditadura. Ora a ditadura é uma situação imposta por uma pessoa, um líder que se assenhoreia em absoluto do poder da governação. A ditadura não é um regime imposto por uma situação ou estado de coisas.
Parece que o jornalista se inspirou nas declarações da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, que surgem transcritas no texto e que passo a citar: «quando não temos os rendimentos suficientes para todas as nossas necessidades, encontramo-nos privados da nossa liberdade».
Mas para uma ditadura se instituir e sobreviver necessita de coartar, em primeiro lugar, a liberdade de expressão e pensamento, mas não parece ser essa falta de liberdade que está em questão no texto. Pensemos, então, na falta de liberdade de movimentos. Ela ocorre frequentemente também em regimes ditatoriais, mas não podemos dizer que um preso vive numa ditadura; que uma pessoa que passa a vida a trabalhar no escritório vive numa ditadura.
Viver ou não numa ditadura não é uma coisa que uma pessoa possa sentir, não decorre da sua perceção subjetiva. Se um indivíduo em democracia se sente em ditadura, então um indivíduo a viver numa ditadura poder-se-ia sentir em democracia, o que é um absurdo, obviamente.
A pobreza é uma condição aviltante, indigna, trágica. Tem como causa políticas económicas amadorísticas, irresponsáveis, eleitoralistas; é o resultado de injustiças e desequilíbrios sociais, mas não é uma ditadura.
Podemos pensar que o jornalista usou do poder figurativo da linguagem e que apenas quis chamar a atenção do leitor para o flagelo. Mas o que conseguiu foi amalgamar conceitos e esvaziar a definição de ditadura – o que aliás é injusto para quem vive de facto sob um regime ditatorial – e assim afastar o leitor de uma abordagem racional, lógica, informada sobre a questão.
É que já nos bastam as fake news. Não precisamos de fake words.*
* Fake news = notícias falsas; fake words = palavras falseadas.
Cf. Como identificar e combater as “fake news”? Cinco perguntas, cinco respostas + El océano semántico de las noticias falsas + El océano semántico de las noticias falsas + O que é fake news, afinal?
Texto escrito pela linguista Ana Sousa Martins, que o disse na rubrica "Cronigramas" do programa Páginas de Português de 17/02/2019.