« (...) Os falantes estão a acostumar-se com os termos e a adaptar-se às diferenças de sentido, às vezes, usando as palavras como sinônimos e fazendo confusão, por exemplo, com quarentena, isolamento e distanciamento social. (...)»
O uso de expressões e termos técnicos como vírus, pandemia e contaminação; o surgimento de novas palavras como cloroquiners e quarententers; o uso de memes e gírias como covidiota ou até estrangeirismos como lockdown mostram que a língua portuguesa tem passado por uma transformação durante a pandemia do coronavírus e deve passar por mais mudanças durante todo o período que começou em março deste ano.
«A língua é um organismo vivo, está em constante evolução e se adapta aos contextos socioculturais. Este momento vai influenciar, por exemplo, na criação de novas palavras e expressões para dar conta desta nova realidade», explicou Claudia Zavaglia, professora doutora do Departamento de Letras Modernas do Ibilce. «Algumas serão permanentes e outras transitórias, mas sem dúvidas a pandemia causará transformações na língua», complementou Angélica Karim Garcia Simão, professora-assistente doutora do Departamento de Letras Modernas do Ibilce.
Os falantes estão a acostumar-se com os termos e a adaptar-se às diferenças de sentido, às vezes, usando as palavras como sinônimos e fazendo confusão, por exemplo, com quarentena, isolamento e distanciamento social. «Isolamento as pessoas entendem mais como afastamento. Quarentena é o período. No começo algumas pessoas acharam que ela duraria 40 dias, até pela proximidade do "quarenta" e a origem do termo ter essa conexão. Mas vi essa confusão sendo feita e acabamos ficando mais do que os 40 dias», comentou Angélica.
A quarentena é a restrição a quem pode ter sido exposto ao vírus, mas não tem sintomas. O isolamento social é a separação de quem está doente das pessoas não infetadas. Já o distanciamento é a medida tomada pelas pessoas para diminuir o contato e evitar a proliferação do vírus.
«Essas diferenças não importam para o cidadão comum. Se falarem em quarentena e isolamento é a mesma coisa, mas sabemos que não é. Acho que está faltando entendimento do distanciamento social. Aqui em Rio Preto está todo mundo na rua», avaliou Cláudia.
Originária da língua inglesa, a palavra que mais tem assustado as pessoas no momento é lockdown, o fechamento total da cidade, em que só é permitido sair para atividades essenciais. Na disputa entre os que defendem o isolamento e aqueles que não cumprem as medidas a ação poderia causar grandes mudanças sociais. «Quando surge um estrangeirismo causa esse estranhamento, mas depois é incorporado e aceito pela comunidade», opinou Angélica. «As mudanças são tão rápidas e repentinas que não há tempo para tradução».
Piadas nas redes sociais, os famosos memes, têm trazido termos em português para o lockdown como tranca-ruas, confinamento ou bloqueio total. «Não sei se em inglês assusta, mas impacta mais. A maioria dos países que não são de língua inglesa tem a adoção de termos em inglês. Se for em inglês é chique, parece que dá mais credibilidade», analisou Cláudia.
Outra expressão em inglês que está na boca do povo é live. Ressignificada, começou a ser mais utilizada com os shows de artistas no YouTube, já que aglomerações estão proibidas. «Entrou na nossa língua de uma forma instantânea. Agora todo mundo faz live. Vai falar com a família e faz uma live e também não é bem esse o significado», disse Cláudia.
A redescoberta de palavras já existentes também tem ocorrido. Termos como pandemia e epicentro estão nas falas dos cidadãos. «Minha mãe até comentou "ah, epicentro é uma palavra nova". Falei que essa palavra sempre existiu e se buscar no dicionário vai encontrar. Acho que essa apropriação se faz em maior escala e passa a ser difundida por conta da mídia e dos meios de comunicação», avaliou Angélica.
Outros termos médicos em alta são testar positivo ou negativo para o novo coronavírus. Todos querem ser negativos, já que assim não teriam contraído a doença. «Na esfera médica sempre foi uma realidade. Dar positivo é ruim, tudo tem que dar negativo», afirmou Angélica. «A gente não testa positivo, a doença é que dá positivo né», acrescentou Cláudia.
Neologismos criados por derivação
Novas palavras também surgiram com a pandemia, como o termo quarenteners (aqueles que estão cumprindo a quarentena) e cloroquiners (os que defendem o uso da cloroquina no tratamento do coronavírus).
«São neologismos, mas criados por um processo já existente: a derivação. Coloca-se o sufixo 'er', que significa "aquele ou aquilo que". Geralmente é afixado depois de um verbo para transformá-lo em substantivo em inglês», comentou Angélica.
O que chamou atenção da professora Cláudia foram termos como bebés e jovens quarenteners. «Entra também como adjetivo em construções como bebés quarenteners, que estão nascendo agora. Isso significaria que eles são fortes, adaptáveis e resilientes».
A ferramenta do o Google
Quem não sabe o significado de determinada palavra que tem sido usada durante a pandemia ou busca por informações da doença usa o Google como ferramenta para manter-se atualizado. «Esse interesse existe desde sempre. Justifica a existência dos dicionários, por exemplo. Embora pensem que seja algo fora de moda, não é. O ser humano sempre teve interesse por registrar e elencar as palavras, além de fixar um significado, o que ajuda a entender o mundo. Única diferença é que antes buscávamos nos dicionários e nas enciclopédias», comentou Angélica.
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Glossário
Covid-19: Nome da doença causada pelo vírus. A sigla é abreviação de "Coronavirus Disease 2019".
Pandemia: Disseminação mundial de uma nova doença.
Lockdown: Fechamento total em que só é permitido sair para atividades essenciais.
Quarentena: Restrição a quem pode ter sido exposto ao vírus mas não tem sintomas.
Isolamento: A separação de quem está doente das pessoas não infectadas.
Distanciamento: Medida tomada pelas pessoas para diminuir o contato e evitar a proliferação do vírus.
Grupo de risco: Pessoas com maior chance de terem quadros graves, caso adquiram a doença, como portadores de doenças crônicas e idosos.
Quarenteners: Pessoas que estão cumprindo o período em casa e defendem o isolamento social.
Cloroquiners: Partidários da cloroquina, medicamento ainda sem definição médica para o tratamento da Covid-19.
Coronialls: Geração que nascerá durante ou como fruto da pandemia. Termo tem relação com a palavra millennials (geração nascida entre 1980 e 1995).
Lives: Transmissão ao vivo dos artistas durante a pandemia. Palavra tem sido usada até para conversas online entre familiares.
Home office: Trabalhar de casa para uma empresa.
Novo normal: Expressão para retratar a realidade moderna, como o uso de máscaras e álcool gel para higienização, além de reuniões virtuais.
Covidiota: Usado para se referir às pessoas que não respeitam o isolamento recomendado ou tomam medidas como estocar alimentos.
Achatar a curva: Desacelerar a propagação do vírus para evitar que os sistemas de saúde sejam sobrecarregados.
Assintomático: Quem não apresenta sintomas, mas pode estar infectado.
O papel das redes sociais ... também na desinformação
Diferentemente de qualquer epidemia que tenha acometido o planeta, a do coronavírus tem nas redes sociais uma ferramenta de massa que chega a grande parte da população seja por meio de notícias sérias, vídeos de humor, gifs ou memes.
«É de uma importância extrema o que as redes sociais estão fazendo: divulgando terminologias da medicina, biologia e da ciência que acabam entrando na nossa visão de mundo. Essas palavras acabam dando uma credibilidade para que as pessoas acreditem nesta doença», avaliou a linguista Claudia Zavaglia.
Porém, mesmo com as vantagens ao propagar as informações, as desvantagens como o excesso de notícias e o desconhecimento sobre os termos pode gerar problemas como a desinformação. «As redes sociais e a mídia poderiam tentar esclarecer os termos para as pessoas. As palavras podem provocar pavor nas pessoas se não tratarmos adequadamente. Por exemplo, falar peste e covid é uma diferença muito grande», comentou Cláudia.
O uso de termos como quarenteners também é alvo de críticas na internet, sob a alegação de que há uma glamourização da pandemia. «É moda gourmetizar tudo. Ser chamado de quarentener é uma palavra 'gourmet' em meio à pandemia. Quem passa isso são as redes sociais e os veículos de comunicação», acrescentou a docente.
«Não só os linguistas mas os falantes também percebem que a língua tem o processo de renovação lexical. Todos os dias novas palavras passam a ser usadas e outras que não são mais interessantes são descartadas. Esse processo é permanente, mas nesses momentos de transformação social se tornam mais visíveis», finalizou Angélica Karim.
Artigo publicado no jornal brasileiro Diário da Região – de São José do Rio Preto – no dia 14 de maio.