«[...] A única coisa que pode salvar mais vidas (covid e não-covid) do que a medicina, é a boa comunicação médica e científica, e era bom que não estivesse tantas vezes nas bocas de quem nada percebe sobre o assunto [...]»
Mais uma mentira. É imperativo que se façam estas correcções. Após quase dois anos de pandemia, há muita coisa que é discutível e matéria de opinião, mas esta discussão só será lógica e frutífera se for baseada em factos. Na noite de terça-feira [21 de dezembro de 2021], José Miguel Judice no seu comentário habitual na SIC Notícias, disse que «estão a morrer pouquíssimas pessoas, e que a maioria é com covid e não de covid». Esta insinuação é falsa, e é também um dos infinitos argumentos dos negacionistas, porque pressupõe que os médicos estão a inflacionar propositadamente os números da pandemia. Esta acusação é grave e contribui para intoxicar a opinião pública. A única coisa que pode salvar mais vidas (covid e não-covid) do que a medicina, é a boa comunicação médica e científica, e era bom que não estivesse tantas vezes nas bocas de quem nada percebe sobre o assunto.
Passo a explicar.
A determinação da causa de morte é um acto médico, que só ao médico diz respeito. Está longe de ser uma ciência infalível, como toda a medicina também não o é. Mas obedece à melhor interpretação dos dados clínicos disponíveis e é feita com a mesma seriedade com que nos aplicamos na busca de um diagnóstico.
SARS-CoV2 é o nome do vírus, e covid-19 (Coronavírus disease) é o nome da doença. O vírus nem sempre causa doença. E a doença tem espectros infinitos de gravidade. A partir do momento que o doente tem teste positivo e apresenta sintomas que justificam a ida ao hospital, onde alguns casos justificam o internamento, começa uma démarche não só diagnóstica, mas também estratificadora da gravidade da doença, e [com a] consequente previsão do que está para vir.
Além dos níveis de oxigenação sanguínea – talvez o parâmetro mais importante na estratificação da gravidade –, acoplamos o estudo analítico que nos permite aferir a dimensão da reacção inflamatória que o organismo está a espoletar contra o vírus, e, como sabem, sendo a expressão mais grave da doença a pneumonia, completamos com Rx pulmonar e quase por regra com TAC pulmonar, para determinar a área afectada com pneumonia. E depois temos scores de gravidade sustentados na área pulmonar atingida. Se for inferior a 25% dificilmente será uma preocupação, aos 50% já nos preocupa muito, e acima dos 75% sabemos que vai ser uma luta grande para salvar aquela vida.
Nós, clínicos, vivemos disto e sabemos bem qual a interferência de uma doença aguda numa doença crónica. E se com a leitura de todos os dados, a nossa interpretação clínica for de que foi a doença covid a causa de morte, assim ficará registado; se a nossa interpretação for que apesar do teste positivo para SARS-CoV2, a doença covid era muito ligeira ou inexistente, então a causa de morte será outra.
Por exemplo, um doente com insuficiência cardíaca já conhecida mas perfeitamente compensada e com boa qualidade de vida, que tem o infeliz desfecho de se infectar com SARS-CoV2, vem ao hospital com sinais analíticos de uma grande reacção inflamatória, uma TAC pulmonar com um atingimento muito expressivo, e morre no decurso deste internamento, a causa de morte será doença covid porque esta pessoa poderia ter vivido uma dezena de anos com aquela doença crónica, e teve uma doença aguda muito grave. Por outro lado, um doente com uma insuficiência cardíaca em fase terminal, que se infecta com SARS- CoV2 mas com uma expressão da doença nula ou redundante, agrava a insuficiência cardíaca e morre, a causa da morte será insuficiência cardíaca. Este raciocínio tem subjectividade, mas é baseado na melhor interpretação da ciência do médico assistencial, e muitas vezes é discutido entre pares.
Se um doente tiver um politraumatismo grave e morrer e, por acaso, tiver um teste positivo para SARS-CoV2, a causa de morte é o politraumatismo. Se um outro politraumatizado grave sobreviver e passados uns meses, extremamente débil em reabilitação motora, no decurso da sua recuperação tiver doença covid, grave o suficiente para lhe tirar a vida, então a causa de morte será covid, apesar de haver um contributo importante da debilidade causada pelo traumatismo, mas se não fosse o SARS-CoV2 poderia viver mais tempo ou até voltar ao seu estado prévio.
Espero ter ajudado. Espero que parem de falar do que não sabem, e espero que deixem de intoxicar a opinião pública, que sobre estas matérias vale vidas.
Com todo o respeito, pelo Dr. José Miguel Júdice e pelo seu percurso, quando me virem a falar na televisão, cheio de certezas, sobre Código Penal, por favor, avisem-me.
Ainda falta muito para nos livrarmos deste desafio colectivo. Quanto mais tempo demorarmos a discutir esta e tantas outras premissas, que não deviam ser matéria de discussão por não peritos, muito mais tempo iremos demorar a centrarmo-nos nas soluções.
Vale tudo menos mentiras e demagogia. E não serve de nada dizer «Bom Natal, com cuidado, mas sem exageros», o que nos serve a todos é dizer: «Bom Natal, com testes, assintomáticos, e terceira dose para todos.»
Cf. «Não há confusão possível" entre mortes por e com covid-19» + Palavras que matam
N. E. (31/12/2021) – Associada à informação que circula em Portugal sobre os números dos falecimentos causados pela covid-19, gera-se frequentemente uma discussão à volta da destrinça entre «morrer de covid-19», no sentido de «morrer por causa da covid-19», e «morrer com covid-10», com o significado de «morrer em consequência de uma dada patologia que não a covid-19, ao mesmo tempo que se contraiu o coronavírus sem este ter sido causa fatal». Esta diferenciação é correta, mas importa assinalar que, do ponto de vista linguístico (mais especificamente, semântico), a preposição com pode exprimir causalidade tal como de (ver Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, pp. 1550 e 1558). Com efeito, «morreu com o susto» pode denotar o mesmo acontecimento que «morreu do susto», e, portanto, a construção introduzida por com torna-se suscetível de gerar ambiguidade na comunicação, pois não é incorreto dizer-se «morrer com covid-19» no sentido de «morrer de covid-19». Assim, justifica-se por vezes o recurso a construções mais elaboradas (perífrases), capazes de referir cada situação com clareza – na medida do possível, ao encontro, aliás, dos critérios de interpretação expostos no presente artigo. Cf. "'De fome' vs. 'com fome'".
Artigo de opinião do médico Gustavo Carona, jornal Público do dia 22 de dezembro de 2021. Manteve-se a norma ortográfica do original.