1. Os deícticos não identificam esta ou aquela entidade; os deícticos apontam para e instituem pessoas, tempos, espaços, modos de realização da ação e objetos como estando inscritos na situação de enunciação. A acepção de deixis, aliás, é próxima da do seu sentido etimológico. Os signos deícticos são signos sui-referenciais: só adquirem significação mediante a referência à própria enunciação. Eu significa «a pessoa que diz eu». Os signos eu — tu instauram o estatuto de participantes no ato verbal, instituem-se a si próprios como centro das coordenadas espaciais-temporais-modais — aqui, agora, assim, respetivamente — que são a base do funcionamento do sistema deíctico.
2. Todo o deíctico é funcionalmente um demonstrativo. Demonstrativo é a tradução latina de deixis (Herculano de Carvalho foi o introdutor dos termos deixis e deíctico na terminologia gramatical portuguesa). Isto não quer dizer que a deixis corresponda apenas ao elenco dos pronomes e determinantes demonstrativos. Refiro-me apenas à evolução e à transferência de termos nas gramáticas da Antiguidade.
3. Foram Benveniste1 e, depois, Lyons2 que descreveram a terceira pessoa como não pessoa. É importante notar: ele(a) é pessoa gramatical, pois é-lhe atribuída flexão verbal, mas é uma não pessoa do ponto de vista da referência deíctica. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que ele(a) não assume qualquer papel discursivo no ato de comunicação:
«— Quem é a Joana?
A Joana é alguém que até pode estar a assistir à conversa, mas que não tem, nessa conversa, o direito de dizer «sou eu» e instituir-se assim como sujeito locutor. (Quantas vezes não assistimos a esta estratégia como meio de menorização social ou profissional de alguém?)
Veja-se também que há atos ilocutórios que não se podem realizar na terceira pessoa — é o caso da promessa:
(i) «— Prometo terminar o relatório amanhã.»
(i) é uma promessa (ato compromissivo); (ii) é a reportação de uma fala (um ato assertivo).
Façamos outro paralelo:
«— Quem é a Joana?
«— Qual é a caixa que eu levo?
— É esta.»
Desta confrontação é mais fácil perceber que ela tem carácter objetual.
Por último, nós é deíctico apenas porque inclui o eu como sujeito locutor. Mais uma vez: nós tem uma equivalência sintática e semântica com eu + ele(a) (aliás, a consulente usa o termo sujeito composto, que é, justamente, um termo sintático), mas isso não faz com que ele(a) torne alguém num agente/interventor discursivo.
1 Benveniste, E. 1976 — O Homem na Linguagem, Col. Práticas de Leitura, Lisboa Arcádia.
2 Lyons, J. 1982 — "Deixis and Subjectivity: loquor, ergo sum?" in JARVELLA, R. e KLEIN , W,. org., 1979, pp. 101-124.
N. E. (10/05/2017) – No quadro da aplicação, a partir de 2010, do Acordo Ortográfico de 1990, passou a escrever-se deítico, conforme a realização fonética mais generalizada deste termo dos estudos linguísticos, cuja transcrição fonética corresponde a [dɐˈitiku] (cf. deíctico, díctico no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciêcias de Lisboa; ver também o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora). No entanto, continua a aceitar-se a grafia deíctico, dado a pronúncia com [k] – [dɐˈiktiku] – ter também frequência significativa em Portugal, no discurso especializado ; é o que fazem o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) e o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (VOC), que registam ambas as grafias. Observe-se que deíctico – ou, atualizando a grafia, deítico – é a forma adotada pelo Dicionário Terminológico, publicado em 2009 e destinado a apoiar o estudo da gramática nos ensino básico e secundário em Portugal. Contudo, convém assinalar que a palavra tem muitas outras variantes, todas corretas, que decorrem de entendimentos diferentes a respeito da adaptação da forma erudita grega que a motivou, δεικτιkóς (ou, na transliteração latina, deiktikós), que significa «que mostra ou demonstra». Assim, nos estudos de língua, também se usa dêitico (cf. Gramática do Português, Fundação C. Gulbenkian, 2013, p. 862), que tem a variante dêictico (ver também o VOP e o VOC), e dítico ou díctico (assinale-se que o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa (VOALP) da Academia das Ciências de Lisboa consigna somente as formas dêitico e díctico). Quanto ao termo deixis, que designa a propriedade indicial ou demonstrativa dos deíticos e este fenómeno linguístico em geral, registam-se igualmente variantes: além da forma mencionada (cf. DT), contam-se dêixis e díxis (cf. Dicionário Houaiss, VOP, VOC, VOALP, o vocabulário ortográfico da Porto Editora e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras).