1. A pergunta implica a distinção entre tipos de frase, actos ilocutórios directos e actos ilocutórios indirectos.
2. O primeiro passo da Teoria dos Actos Ilocutórios foi provar que os enunciados que produzimos não têm por função primordial descrever um dado estado de coisas nem estão sujeitos a critérios de verdade e falsidade.
2.1. Austin começou por distinguir as afirmações que são meras descrições das afirmações em que o locutor age sobre o outro, afirmações que não podem ser julgadas como verdadeiras ou falsas, mas sim como felizes ou infelizes, com ou sem sucesso. Com base nestes pressupostos, Austin propõe uma taxinomia (a primeira) dos actos ilocutórios.
2.2. Searle, antes da reelaboração da taxinomia dos actos ilocutórios (com a qual se trabalha actualmente em análise do discurso), adopta um método que lhe permite fazer a separação entre, por um lado, a forma linguística do acto e o seu conteúdo semântico (que podemos associar ao tipo de frase ou à estrutura do enunciado) e, por outro, a ilocução. Assim, Searle vem afirmar que quando um locutor profere um enunciado ele realiza:
– um acto de enunciação: o locutor constrói uma frase (declarativa, interrogativa, exclamativa, imperativa, afirmativa, negativa, mais ou menos modalizada, numa dada pessoa, etc.);
– um acto proposicional: correspondente à relação referência – predicação. [Ex.: «O Zé (referência) é belo (predicação)»];
– um acto ilocutório: quando o locutor realiza uma ordem, um pedido, dá um conselho, faz uma promessa, etc.;
– um acto perlocutório: quando persuade, convence, etc.
2.2.1. Searle estende o valor accional dos enunciados e vem dizer que mesmo nos enunciados considerados puramente descritivos o locutor realiza também um acto: ele envolve-se com a verdade do conteúdo proposicional que enuncia. Searle classifica estes actos como actos assertivos, dentro da sua taxinomia:
– Actos assertivos: o locutor assegura a verdade do dito.
– Actos directivos: o locutor procura que o alocutário faça algo no futuro; o conteúdo proposicional dos actos directivos consiste em o alocutário ter de fazer algo.
– Actos compromissivos: o locutor obriga-se a realizar algo no futuro.
– Actos expressivos: o locutor exprime um estado psicológico; tipicamente, este tipo de acto tem por função olear as relações interpessoais. (Ex.: «Os meus sentimentos»; «Lamento imenso.»)
– Actos declarativos: provocam a verdade do seu conteúdo proposicional; implicam a vigência de uma instituição extralinguística e de um dado estatuto do locutor. (Ex.: «Declaro-vos marido e mulher»; «Está aberta a sessão.»)
Primeira conclusão: as classificações assertivo e declarativo, quando nos estamos a referir a actos ilocutórios, não têm qualquer correspondência com as classificações declarativa, quando nos referimos a um tipo de frase, ou assertiva, quando mencionamos um tipo de modalização afecto a um enunciado.
3. Outra questão é o facto de muitas vezes o locutor formular um acto para cumprir outro. Temos então a distinção entre actos ilocutórios directos e actos ilocutórios indirectos. O locutor conta que o alocutário esteja em condições de proceder às inferências necessárias de modo a reconhecer o fim ilocutório último do seu acto.
Eis alguns exemplos:
a) Deixaste a porta aberta. = Fecha a porta./Ordeno-te que feches a porta.
[Acto directo assertivo] [Acto indirecto: directivo]
(Tipo de frase: declarativa)
b) Amanhã tens aqui o relatório. = Entregarei o relatório a tempo./Prometo-te que vou entregar relatório a tempo.
[Acto directo: assertivo] [Acto indirecto: compromissivo]
(Tipo de frase: declarativa)
c) Deixaste de fumar! = Parabéns!
[Acto directo: assertivo] [Acto indirecto: expressivo]
(Tipo de frase: exclamativo)
d) Vou-te comprar um casaco./Prometo que te vou comprar um casaco. = Vai comprar um casaco.
[Acto directo: compromissivo] [Acto indirecto: directivo]
(Tipo de frase: declarativa)
4. Analisando o enunciado proposto pelo consulente.
Como o sujeito é nulo, vamos considerar as duas situações possíveis.
e) – Já lhe disse, Sr. Aurélio, é fundamental que deixe de fumar.
f) É fundamental que [ele, o seu marido] deixe de fumar.
Quer em e) quer em f) temos duas frases declarativas.
e) e f) correspondem a actos directos assertivos.
e) e f) realizam actos indirectos directivos.
Porque é que podemos concluir a respeito deste facto?
Vamos à definição de acto ilocutório directivo: o seu conteúdo proposicional pode ser parafraseado por: «o alocutário deve fazer algo». Ora, isso mesmo está no conteúdo proposicional de e) e f), na construção completiva modalizadora: «É fundamental que...»
[Outros adjectivos modais/construções de modalização: «É possível que...»; «É provável que...»; «É certo que...»]. Esta construção modalizadora – «É fundamental que...» – é, então, o segmento da forma linguística do enunciado que, marcando a necessidade de realização da acção, permite a detecção do tipo de acto indirecto. Isto paralelamente a haver outros factores contextuais a considerar (o locutor é médico, está-se numa consulta, o Sr. Aurélio é um fumador incorrigível, etc.).
Em e) o locutor quer que o alocutário realize algo: deixar de fumar.
Em f) o locutor quer que o alocutário realize algo: levar o marido a fazer algo: deixar de fumar. Neste caso, a acção a realizar pelo alocutário é um acto verbal.
(Isto partindo do princípio de que a mulher não recorre a outros meios menos diplomáticos!)