1. Uma nota prévia: uma mesma forma, de uma dada categoria gramatical, pode ter diferentes tipos de referência, em função do contexto.
a) «— O que é isso?!
— Unhas de rã.»
Isso: aponta para um objecto evidente, disponível no contexto situacional da elocução.
b) «Tu trabalhas muito, e isso não é bom.»
Isso: aponta para um segmento discursivo precedente — «Tu trabalhas muito»
c) «Eu assisti àquilo impávida: o Zé a descompor toda a gente que o contrariava.»
Aquilo: o pronome aponta para um segmento discursivo que vem a seguir — «o Zé a descompor toda a gente que o contrariava».
Há vários termos usados para designar estes operadores que apontam para dentro do próprio texto [exemplos b) e c)]: deixis textual, deixis inactual, deixis endofórica. A deixis propriamente dita, a que aponta para o tempo, o espaço, os objectos que formam o contexto situacional em que se encontram os interlocutores, recebe então os seguintes termos diferenciadores: deixis indicial, deixis actual, deixis exofórica.
Falar em deixis textual é pressupor (com base num raciocínio analógico) que o texto é um espaço mental idêntico ao campo mostrativo situacional: também num texto há um aqui, um lá e um agora:
«Chegados aqui, paramos
atalhamos, suspendemos.
A história tem tantos anos
e nós ainda a tememos.»
(António Torrado – A História da Carochinha e do Infeliz João Ratão, Civilização)
2. Falar em deícticos indiciais de tempo é dizer que o intervalo de tempo que o deíctico capta está calculado em função do momento em que um eu se dirige directamente a um tu. Falar em deícticos textuais de tempo é dizer que o intervalo de tempo que o deíctico capta está calculado em relação a um ponto de referência alternativo ao momento da enunciação — expresso numa data, por exemplo.
d) «Em 1997, o Zé ficou desempregado. No ano anterior tinha estado na Alemanha como assistente convidado. Só no ano passado é que regressou.»
e) «Em 1997, o Zé ficou desempregado. Dois anos depois foi para os EUA. Só ontem é que regressou.»
Em d), «No ano anterior» é um deíctico textual: referencia um intervalo de tempo anterior ao ponto de referência interno ao texto (expresso na data 1997).
Em e), «Dois anos depois» é um deíctico textual: referencia um intervalo de tempo posterior ao ponto de referência interno ao texto (expresso na data 1997).
Mas «no ano passado», em d), é um deíctico indicial, porque tem o momento de enunciação como ponto de referência — conforme se pode dar conta na confrontação com ontem, no exemplo e).
3. Acresce que é comum verificar que os advérbios de localização espacial servem a localização temporal.
Lá pode ser um deíctico espacial:
f) «Fui lá.»
Lá pode ser deíctico temporal (o mesmo se passa com aqui):
g) «Só tenho de entregar a tese para o ano. Daqui até lá ainda muita água vai correr debaixo das pontes.»
4. Atendendo ao que ficou dito, temos a seguinte análise:
h) «Em 1997, o Zé ficou desempregado. De lá até ao ano passado, estudou violino e visitou as principais capitais europeias.»
«Em 1997»: ponto de referência temporal interno/explicitado no texto (alheio ao momento da enunciação).
lá: deíctico textual com referência temporal
«o ano passado»: deíctico indicial