O tratamento dos juízes no cabeçalho-vocativo de peças processuais assinadas por advogado é matéria de praxe, não de Direito. No tribunais superiores, é normal o tratamento destes ser «Venerando».
Trata-se de uma praxe plurissecular, arcaísmo em permanente distanásia, que se "encaroçou" nos países lusófonos, inclusive no Brasil, onde subsistiu desde o seu período colonial. No entanto, no Brasil, usa-se também, não raramente, o tratamento «Colendo» ou «Exmo. Senhor», adotado também por alguns advogados em Portugal. Eu próprio já assim fiz em peças dirigidas ao Supremo Tribunal de Justiça, ao Supremo Tribunal Administrativo e ao Tribunal Constitucional; e, em Angola, ao seu Tribunal Supremo, assim como ao Tribunal Constitucional. Os magistrados judiciais destes tribunais são designados legalmente como juízes-conselheiros, costumando aplicar-se o mesmo tratamento de «Venerando», quer a estes, quer aos juízes-desembargadores, dos Tribunais de Relação (tribunais de 2.ª instância na jurisdição comum).
Essa praxe mantém-se, com certeza, pela inércia da tradição, mas também, em não pequena medida, pelo interesse subconsciente ou consciente do advogado em ser lisonjeador ou bajulador perante o juiz da causa a benefício do seu patrocinado.
É dupla a razão de eu não usar o tratamento «Venerando» – atendo a uma razão semântica e a uma razão jusconstitucional. Por um lado, etimológica e lexicograficamente, venerar quer dizer «render culto», «adorar». Por isso, faz sentido «venerar Deus ou os deuses» e «venerar a alma dos mortos» da família, da Pátria, etc.; não faz, porém, sentido, venerar/adorar juízes, que estão vivos e são humanos. Por outro lado, o uso desse vocativo honorífico por advogados em relação a juízes dos tribunais superiores contraria o papel/status do advogado como membro do triângulo dos operadores judiciários – advogados e magistrados do foro (por ordem dialética: tese – antítese – síntese). Legalmente, nos ordenamentos jurídicos de matriz eurocontinental (como é o caso de Angola e Portugal – não é, tipicamente, o caso do Reino Unido, Estados Unidos da América e países anglófonos em geral), não há, entre juízes e advogados, uma relação de hierarquia (relação vertical – de cima para baixo), mas, sim, como enfatiza a doutrina mais moderna, uma relação de heterarquia (relação horizontal – de igual para igual).
O facto de, em audiências presididas por um ou mais juízes, em Angola (como na demais lusofonia), estes terem uma função de presidência, qualificada pela doutrina como posição de «policiamento», no sentido de «disciplinamento comportamental da audiência» (similar, em larga medida, ao do presidente da mesa duma assembleia geral numa associação ou sociedade comercial) presta-se à interpretação, errada, de que o juiz é de facto um hierarca em relação ao advogado. Numa perspetiva de aparentes parecenças, o juiz tem, inclusive, o poder de, em caso de determinados tipos de excessos, advertir o advogado (não o de o admoestar, que teria valor de sanção disciplinar), o poder de retirar a palavra ao advogado (em medida apropriada e dentro dum circunstancialismo muito restrito, não o poder de o privar da palavra de modo terminante e definitivo) e o poder de o «expulsar» da sala de audiências em casos-limite de gravidade da atuação do advogado (o termo expulsar é um disfemismo terminológico, adotado no tempo do regime fascista português e consentâneo com o espírito ditatorial de entronização das autoridades da Administração Pública e das magistraturas do foro), que, ainda não substituído por «fazer sair», pode induzir à ideia errada de que esta medida tenha natureza de sanção disciplinar.
Não é por acaso que um juiz, nos países de Direito com matriz lusófona (e, em geral, românica) não tem competência para condenar o advogado (patrocinador duma causa perante si pendente), quando ache ser caso disso, em multa e indemnização por litigância de má-fé (deve, sim, e só, em tais casos, participar à Ordem dos Advogados a infracção do advogado que entenda merecer tal qualificação).
Também não é por acaso que o Código Penal angolano, a par do Código Penal português, reveladoramente, pune crimes cometidos contra a vida, integridade física e dignidade dos advogados em termos semelhantes aos previstos para idênticos crimes cometidos contra magistrados do foro.
Facto não despiciendo, na errada formação da ideia de que o advogado está perante o juiz numa relação de inferioridade ou subordinação. São os filmes norte-americanos, em que o advogado americano, não raramente, faz quase o papel dum "caixeiro-viajante", mediador mendicante perante o juiz, sujeitando-se a admoestações e até ameaças do juiz da causa que podem roçar a humilhação.
Poderá argumentar-se, paralelamente, em favor da intocabilidade do tratamento de «Venerando», o facto de estarem registados lexicograficamente muitos lexemas de língua portuguesa, mormente topónimos, em que não há correspondência entre o que exprimem e o que, segundo a verdade, deviam exprimir.
Casos de tponímia singulares
A título de mero exemplo, temos o Rio de Janeiro, que na realidade não é um rio (é um golfo que os navegantes portugueses, na crónica de bordo do seu achamento, fizeram erradamente registar como sendo um rio encontrado no mês de janeiro). O nome ficou até hoje como nome da cidade, sem qualquer retificação, prevalecendo a designação de origem sobre a verdade geograficamente demonstrada.
Outro exemplo, entre muitos, é o do arquipélago dos Açores, onde de facto não há açores (ave de rapina) – foram navegadores ingleses, mais conhecedores de ornitologia do que os descobridores portugueses, que repuseram o rigor zoológico, mas o topónimo manteve-se até hoje.
Noutro casos de toponímia, não houve um erro original, mas o nome inicialmente recebido presta-se a confusão quanto ao seu significado. É o caso de Lobito, cujo nome na língua ágrafa local, devia ser textuado como «lupito», que quer dizer «local de passagem», mas que se presta ao entendimento de que no local havia ou foram encontradas crias de lobos. As Ilhas Canárias, situadas sobre a placa tectónica africana (ao contrário do arquipélago da Madeira, situado sobre placa europeia), nada tem que ver com canários significando, segundo a sua etimologia latina, «ilhas dos cães». O nome, dado pelos navegadores espanhóis, ficou e manteve-se até aos dias de hoje.
Voltando ao ponto de partida, o que deve, legalmente, marcar as relações entre advogados e juízes é a ideia de heterarquia e, portanto, de respeito mútuo no relacionamento, dentro das regras processuais, funcionais e deontológicas pertinentes. O tratamento «venerando» contribui, ainda hoje, no mínimo a nível do subconsciente, para um entendimento dissentâneo e, portanto, parece plausível que seja evitado.
Cf. Formas de Tratamento Protocolar
N. E. (26/11/2023) – Foi colocada nova ilustração, em que são representados três juízes envergando beca. Baixo-relevo de Henrique Moreira (1890-1979), no Palácio da Justiça do Porto, 7.º Juízo, 2.º piso.