«(...)A construção do papel de cidadão e o seu cumprimento na sociedade tem como base a igualdade, inclusive perante as regras. (...)»
RIO – «Você sabe com quem está falando?». A expressão comentada em tantas situações do cotidiano foi consagrada pelo antropólogo e professor titular do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, Roberto DaMatta, que destrinchou o tema na obra Carnavais, malandros e herói: para uma sociologia de dilema brasileiro", publicada pela primeira vez em 1979. Mais de 40 anos depois a intimidação de um fiscal da Vigilância Sanitária no último fim de semana chocou o país. O superintendente de Educação e Projetos da Vigilância Sanitária, Flávio Augusto Soares Graça, foi atacado por uma mulher, durante uma operação em um bar na Barra da Tijuca, após chamar o marido dela de cidadão: «Cidadão, não. Engenheiro civil formado e melhor que você.»
DaMatta concorda que não há mais lugar para postura similar à registrada em vídeo. No entanto, a desconstrução desse modelo demanda um exercício de reflexão e empenho para abandonar um traço cultural no Brasil. A construção do papel de cidadão e o seu cumprimento na sociedade tem como base a igualdade, inclusive perante as regras.
– É um exemplo clássico de que o «sabe com quem está falando?» não acabou. E o que isso sinaliza para a gente? Que o problema da igualdade, que é exatamente onde a moça reage, é de todo mundo ser no mundo da rua cidadão. O papel que se exerce na rua não é de filho ou de engenheiro, mas definido pelo anonimato. Não interessa quem é. O papel é democrático porque a base é a igualdade. Não é ser dono. Não é isso que está em jogo. (E sim) A nossa dificuldade, a nossa alergia à igualdade.
Para o antropólogo, não deveria ser necessário haver fiscais para verificar se as regras estão sendo cumpridas:
– Não deveria nem ter fiscal. Nós colocamos porque há abuso. E por que tem o abuso? Por uma razão ainda mais complexa, visível e invisível, de que quem obedece a regras no Brasil é subordinado. Os superiores não obedecem, eles têm foro privilegiado. É legal não obedecer – observa o antropólogo.
O olhar pautado pela falta de igualdade perdura ao longo da História do Brasil desde a vinda de Dom João VI, com a corte portuguesa no longínquo ano de 1808. Ainda num regime escravocrata, os estrangeiros vindos da coroa, em maioria da Península Ibérica, ocupavam um lugar de destaque e de prestígio se comparado aos povos escravizados trazidos à força da África, destaca DaMatta. Desde então, os papéis de hierarquia têm se mantido de outras formas.
– A moça está recusando o papel de cidadão. Se o estado democrático de direito é de cidadãos, e não de pai de família ou de velhos e de jovens, ou de homens e de mulheres. Então, estamos roubados. Jamais teremos uma democracia. Os papéis que hierarquizam, que estruturam desigualdades sempre retornam. E eles precisam ser combatidos com inteligência, com uma sanção justa – afirma o antropólogo.
O caso de agressão verbal ao fiscal da Vigilância Sanitária do Rio levou a uma série de reações de quem se deparou com as imagens veiculadas desde o fim de semana, após a exibição no programa "Fantástico", da TV Globo. Flávio Graça contou que ele e os colegas têm se deparado com situações que envolvem intimidações e xingamentos durante as fiscalizações em época de pandemia da Covid-19.
Se há um ganho com o episódio, o antropólogo destaca o fato de ter se jogado luz sobre o tema. As reflexões também teriam sido motivadas pelo atual momento de repensar sobre os diferentes privilégios enraizados na sociedade brasileira.
– É um problema cultural. Tem a ver com a formação do Brasil, com séculos de História. Essa ideia de que olhamos muito mais para cima e para baixo do que para o lado. A sociedade tem um olhar mais verticalizado. As situações de igualdade são de exceção. E isso é indicado pelo "você sabe com quem está falando?" – observa.
Para o antropólogo, são mudanças que vão além de legislação.
– O último obstáculo a ser mudado não é a lei. Não é o Congresso aprovar as reformas de base. É a cultura brasileira, que não é da igualdade, mas da subordinação, da hierarquia e da desigualdade. É exatamente a tentativa que essa moça fez. A tentativa de hierarquizar uma situação definida por igualdades. O cidadão, você não sabe quem é. E o que ela disse? Ele não é um cidadão, uma pessoa qualquer, mas um engenheiro formado. Não aceita as situações igualitárias, que são iguais perante uma regra geral. No caso, todos que estão num espaço público precisam usar uma máscara para se proteger do coronavírus e não ser um transmissor involuntário.