« (...) O certo é que o tempo muda as vontades e estas também mudam os “tempos”, e a verdade é que, principalmente entre os jovens, há atualmente quem utilize o você como forma respeitosa de marcar distanciamento. (...) »
Em Portugal, cada vez mais se discute sobre o “grau” de proximidade, intimidade e respeito veiculado pela forma de tratamento você, pelo que decidi dedicar-lhe o presente artigo.
O pronome supracitado tem a sua origem na expressão de reverência «Vossa Mercê», inicialmente utilizada como forma de tratamento dada aos reis, com a qual se destacava a «sua graça», a «sua misericórdia» ou a «sua benevolência».
No entanto, como a espécie humana é, em grande parte, feita de vaidosos, arrogantes e “lambe-botas”, muitas foram as formas de tratamento que se foram desencantando, tal era a rapidez com que desencantavam, sobretudo porque o seu uso acabava por ser alargado e vulgarizado, e era necessário encontrar algo sempre novo e melhor a destacar nas figuras importantes do reino.
Os reis, de mercê, passaram a alteza, majestade e não sei que mais; e os nobres, não satisfeitos com as sobras de «Sua Alteza», rapidamente passaram da mercê para a excelência ou senhoria, em função da posição ocupada na hierarquia do reino.
Quanto à forma «Vossa Mercê», de tão banalizada que foi, acabou por cair em desuso, deixando órfãos alguns filhotes um pouco mais “populares”, como o vossemecê e o você, que perderam “estatuto”, talvez também em função dos debiques gradualmente sofridos pela forma original…
O certo é que o tempo muda as vontades e estas também mudam os “tempos”, e a verdade é que, principalmente entre os jovens, há atualmente quem utilize o você como forma respeitosa de marcar distanciamento. Digo respeitosa, porque, mesmo não revelando grande preocupação em fazê-lo de um modo mais formal, a verdade é que, pelo tom de voz, pela entoação, pela postura e pelo sentido de oportunidade evidenciados, os falantes em questão revelam um respeito muito mais genuíno do que o veiculado por uma simples forma de tratamento.
Quanto à população em geral, são sobretudo os mais velhos e os culturalmente mais instruídos e menos influenciáveis que ainda consideram o pronome de tratamento você como uma forma menor, a ser utilizada quando existe alguma intimidade ou proximidade entre os interlocutores, e apenas em situações de “igual para igual” ou “superior para inferior”.
Na realidade, se ranking houvesse para as «formas da terceira pessoa do singular» utilizadas oralmente entre pessoas “comuns”, a utilização do pronome você ficaria em terceiro e último lugar, bem longe da expressão «o senhor» («O senhor Manuel vem comigo?»), ou mesmo daquela em que utilizamos o nome de batismo do nosso interlocutor («O Manuel vem comigo?»).
Na minha opinião, o mais importante de um ato de fala é que a mensagem e a intenção comunicativa sejam claras em todas as suas vertentes. A forma de tratamento é apenas mais um “instrumento” como muitos outros que, isoladamente, pouco ou nada significam.
É tempo de todos compreenderem que o principal objetivo da linguagem, verbal e não verbal, foi, é e será sempre o de permitir comunicar, e que, não menos do que o excesso de simplicidade, a riqueza e a rigidez excessivas de uma língua serão sempre um entrave para a sua correta utilização.
Reflexão originalmente publicada no jornal eletrónico Diário Atual, em 11 de março de 2011.