A ideia de que a aquisição de uma língua materna (LM) é diferente da aquisição de uma língua não materna (LNM) tem sido comummente aceite no seio da comunidade científica. Contudo, um público menos informado e atento a estes assuntos tem, por vezes, dificuldades em perceber o que distingue uma língua materna de uma língua não materna.
A língua materna consiste na língua (ou nas línguas) que o falante adquire nos primeiros anos de vida. Consiste no primeiro sistema linguístico de socialização adquirido em contexto familiar, sendo que a assimilação das estruturas desta/(s) língua/(s) ocorre de modo natural e espontâneo, numa fase precoce do desenvolvimento do falante. Deste modo, uma criança filha de pais portugueses e a residir em Portugal tem como língua materna o português, uma vez que se trata da língua adquirida em casa e falada pela comunidade onde cresce.
Por outro lado, consideremos o caso de uma outra criança também filha de pais portugueses imigrantes em França e que nasceu já nesse país: quando está em casa, os pais comunicam com ela em português, mas ao ser inserida na comunidade do país onde reside, através da frequência do ensino pré-escolar, a língua de socialização passa a ser o francês. Neste caso, pode-se, então, considerar que esta criança tem duas línguas maternas. Todavia, apesar de, neste segundo caso, o português ser a primeira língua adquirida pela criança, ao longo do seu desenvolvimento e, caso a família permaneça em França, a língua falada no contexto familiar rapidamente se torna a língua minoritária. De acordo com Cristina Flores1, o domínio do português por muitos lusodescendentes de segunda geração pode variar, «dependendo de fatores como o grau de exposição à língua portuguesa, as formas de contacto, a frequência de ensino formal e a motivação para conversar na língua».
Por oposição, a aquisição de estruturas linguísticas em fases tardias do desenvolvimento do falante que ocorrem depois de este já ter adquirido a(s) sua(s) língua(s) materna(s), significa que esta língua corresponde a um sistema linguístico não materno. Quando se inicia o processo de aquisição de uma língua não materna, o aprendente já possui, pelo menos, um sistema linguístico prévio (por exemplo, a língua materna) e muito dificilmente o aprendente tardio atinge, satisfatoriamente, níveis de competência e de proficiência linguística consideradas nativas em todos os planos estruturados da língua-alvo. Larry Selinker2, um importante teórico e investigador da área da aquisição de línguas não maternas, defende que apenas 5% dos aprendentes tardios consegue atingir níveis de proficiência superiores em todos os planos estruturados da língua-alvo.
No entanto, as designações usadas em relação a uma língua não materna podem também variar de acordo com o contexto sociolinguístico em que o falante se circunscreve. Por exemplo, um jovem finlandês, que vive e estuda em Helsínquia (capital da Finlândia), decidiu estudar português, porque no futuro tem interesse em ir trabalhar para o Brasil. O único contacto que tem com a língua portuguesa são as quatro horas semanais de aulas do curso de língua que frequenta na universidade. Neste caso, segundo Isabel Leiria3, a língua portuguesa é uma língua estrangeira, uma vez que não tem qualquer função política na Finlândia. Mas suponha-se ainda o seguinte caso: um jovem cabo-verdiano, residente na cidade da Praia e que, antes de ter entrado na escola, nunca tinha contacto com o português, porque em casa e no bairro onde vive comunica sempre em crioulo, ainda que saiba falar e escrever bem português, visto estar a estudá-lo na escola e este ser uma das línguas oficiais do seu país. Neste caso, o português não poderá ser considerado língua materna do jovem, uma vez que não é o seu primeiro sistema linguístico de socialização, mas antes uma língua segunda, na medida em que é uma língua não materna que, na comunidade onde este jovem se insere, possui um estatuto sociopolítico definido (língua oficial do país), sendo ensinada nas escolas e desempenhando um papel crucial dentro das fronteiras territoriais onde é utilizada.
A coexistência dos conceitos de língua estrangeira e língua segunda pode fazer supor que estamos perante realidades muitos diferentes, contudo, tal como assinala Isabel Leiria, ainda não existe um consenso «quanto àquilo que designa cada um deles». Até mesmo a literatura que faz distinção entre estes dois conceitos não é unânime quanto aos critérios que estão na sua diferenciação. Para além dos critérios sociolinguísticos e políticos, existem outros de diferente argumentação e relacionados com a distinção entre aprendizagem e aquisição.
Reconhece-se que há uma diferença entre aprendizagem da língua não materna circunscrita ao contexto formal da sala de aula e a aquisição dessa língua através da imersão no ambiente onde esta é falada, ou seja, aquisição da língua em contexto natural e de forma espontânea. No primeiro caso, a língua é objeto de estudo na sala de aula (aprendizagem), já no segundo é um meio de comunicação e socialização (aquisição). Nesta linha de pensamento, a língua estrangeira aplica-se apenas aos casos dos alunos que aprendem o português em contexto instrucional formal e não têm qualquer contacto com esta língua fora da sala de aula, como o caso do jovem finlandês. No caso do jovem cabo-verdiano, o contacto com o português, língua oficial do seu país, aumenta à medida que prossegue o seu percurso académico e vai ganhando um papel mais ativo na sociedade, sendo que o seu português passa rapidamente de língua estrangeira a língua segunda.
Em suma, apesar de a distinção entre língua materna e língua não materna ser algo já bastante explicado no âmbito dos estudos da aquisição de línguas, o conceito de língua não materna ainda carece de uma definição clara e que dê conta de várias situações linguísticas, muitas vezes, desafiadoras da descrição.
1. FLORES, C. (2013), Português Língua Não Materna. Discutindo conceitos de uma perspetiva linguística. In: R. Bizarro, M. Moreira & C. Flores (orgs.), Português língua não materna: investigação e ensino. Lisboa: Lidel, pp. 35-46.
2. SELINKER, L. (1972). Interlanguage. IRAL vol.10: 3. 209-231.
3. LEIRIA, I. (2004), Português Língua Segunda e Língua Estrangeira: Investigação e Ensino. Idiomático, Revista Digital de Didáctica de PLNM, 3, Centro Virtual de Camões, pp. 1-11.
N. E. (20/05/2023) – Foram sublinhados os termos que designam conceitos desta área de investigação.