O trabalho que os linguistas fazem deve ter consequências no ensino da língua
Sendo linguista há mais de trinta anos, não consegui resistir à tentação de colaborar na polémica sobre o ensino da língua portuguesa que já se prolonga há alguns meses. As reflexões que se seguem têm como objectivo mostrar que o trabalho que fazem os linguistas deve ter consequências no ensino da língua materna, visto que a língua é um objecto de estudo e aprendizagem em si mesmo, tal como outros objectos do conhecimento.
Tem-se dito repetidamente que o ensino da língua materna apresenta resultados decepcionantes, que são visíveis no desempenho linguístico da generalidade dos cidadãos. Além disso, esses resultados têm sido vistos como efeito de condições sociais e culturais, que também marcam, da mesma forma, outros países de desenvolvimento análogo ao nosso. Mas não pode atribuir-se apenas às condições sociais e culturais a falta de domínio do uso da língua, embora neste campo essas causas sejam de grande importância. Tal como em outras áreas do saber, como a física, a psicologia ou a filosofia, os programas e as práticas de ensino da língua portuguesa nas nossas escolas devem ser aperfeiçoados com sólido apoio científico, para poderem contribuir de modo mais eficaz para a qualidade do desempenho linguístico dos cidadãos. Se todos concordam com estas generalidades, os problemas surgem quando é necessário concretizá-las. Assim, uma primeira questão que se põe é a de saber para que serve "ensinar a língua que os alunos já falam" quando chegam à escola. A segunda questão consiste em saber o que se entende por "sólido apoio científico" no caso do ensino da língua materna. O mais grave é que muitas pessoas, incluindo professores de língua portuguesa, não encontram resposta para qualquer destas questões.
Ponhamos a pergunta de outro modo: será que o ensino da língua vai além da leitura dos textos literários, da escrita sem erros ortográficos e do conhecimento de algumas regras do "falar correcto", ainda que todos estes aspectos façam parte do uso da palavra? Será que a língua materna se pode ensinar por si mesma, como forma de comunicação e de comportamento que está presente no quotidiano de todos nós? A resposta é, de imediato, "sim, ensina-se a língua materna como objecto em si mesmo, na sua utilização e no domínio que os falantes devem ter dela". Vejamos então qual a justificação desta resposta.
A linguagem verbal é uma forma superior de comportamento que serve para a comunicação com os outros e connosco mesmos, permite o desenvolvimento de raciocínios e a expressão de emoções. A língua que usamos foi adquirida nos primeiros anos, com surpreendente rapidez, porque a humanidade possui uma capacidade genética de construir a gramática da língua com que está em contacto no período de aquisição. É a linguagem, concretizada na língua que falamos, que nos distingue dos animais. Se assim é, na medida em que a nossa utilização da língua for mais rigorosa, adequada e consciente, também a nossa afirmação como pessoas e a nossa actuação como cidadãos será mais eficiente, completa, responsável e interveniente. É por esta razão que a aprendizagem da língua materna faz parte dos "curricula" do ensino básico e secundário em todos os países.
É também por esta razão que essa aprendizagem deve ir ao encontro da necessidade que temos de usar a língua com propriedade em todos os momentos. Será que, por exemplo, eu estou a argumentar com eficácia neste artigo sobre o ensino da língua materna? A argumentação também se aprende, a escrita e a oral. Aprende-se a hierarquizar os argumentos, a usar as palavras próprias. E esta argumentação pode pôr-se ao serviço da defesa dos direitos pessoais, da transmissão de uma ideia, da insistência sobre um pedido.
Mas, evidentemente, o uso da língua não se faz apenas quando argumentamos. Na disciplina de língua materna também se aprende, na escrita, a pontuar e a organizar graficamente a estrutura do texto; na oralidade, aprende-se a usar a prosódia (a entoação, a intensidade da voz, a duração dos sons) aumentando a eficácia do discurso. Numa sociedade alfabetizada como é a nossa, a escrita tem um modelo, diferente mas relacionado em aspectos básicos com o modelo da oralidade, e ambos são passíveis de ser ensinados. Um aspecto fundamental do uso da palavra é a sua adequação à situação em que nos encontramos. As formas de tratamento variam consoante as relações entre os interlocutores e as circunstâncias da comunicação. O ensino da língua proporciona um enriquecimento do vocabulário, pela sua diversificação e pelo rigor do emprego. O domínio das construções sintácticas e das operações semânticas permite uma explicitação do raciocínio, que muitas vezes se apresenta ao nosso espírito de forma confusa e indefinida – e por isso "sabemos mas não conseguimos explicar". Todas estas operações, e muitas outras, podem ser objecto de ensino em aula de língua materna, no uso da escrita e na prática do oral.
Na discussão que se tem travado a propósito do ensino do Português surge como ponto sensível a importância do conhecimento e do estudo dos textos literários. É evidente que a utilização da palavra como forma de arte é fundamental, indispensável e valiosa na formação da sensibilidade dos alunos e concorre para o desenvolvimento das práticas linguísticas atrás enunciadas. Mas não é o único meio. A par desse, existe a possibilidade de tomar como ponto de partida a produção dos alunos, o que lhes permite pensar sobre a sua própria fala, sobre essa magnífica forma de comportamento que os falantes manipulam inconscientemente. O ensino da língua é um modo mágico de trazer à consciência o uso da palavra. Não aprendemos na escola como respiramos, como funciona o nosso aparelho reprodutor, como nos movemos? Porque não aprenderemos como falamos?
Por outro lado, o conhecimento reflexivo sobre a língua materna e sobre as suas especificidades, através da análise do funcionamento das estruturas vocabulares ou sintácticas, ou dos sistemas de sons que caracterizam o Português, pode tornar-se um utilíssimo meio de desenvolvimento do raciocínio abstracto, da atenção e da memória, sendo portanto um instrumento importante para a aprendizagem de outras disciplinas.
A quem duvida que o conhecimento das "humanidades" pode ser científico, afirmamos que o estudo da linguagem e das línguas é uma ciência, a Linguística. Tem sido reconhecido nas últimas décadas que a Linguística envolve um saber múltiplo e que, para além das estreitas relações que sempre foram evidentes entre o estudo da língua e o da literatura, tem igualmente relações com a Psicologia, a Sociologia, as Neurociências, a Inteligência Artificial e a Informática. O saber linguístico não se restringe à descrição e explicação das estruturas das línguas, mas permite a convergência de outros saberes, que têm papel relevante na formação intelectual e social dos estudantes.
O progresso conseguido nesta ciência tem consequências no ensino e na aprendizagem da língua portuguesa, sem que isso signifique que o ensino da Linguística se deva substituir ao ensino da língua. Entre nós, a Linguística tem conseguido, mercê do trabalho científico dos linguistas portugueses, um notável avanço em todas as vertentes do conhecimento do Português, para o que contribuem as diversas áreas – análise e explicação do funcionamento das estruturas linguísticas (o que normalmente se integra no estudo da gramática), psicolinguística, sociolinguística, pragmática ou análise do discurso.
Assim, os linguistas portugueses, especialistas no estudo da ciência da linguagem e na análise da língua portuguesa, deverão ser, naturalmente, envolvidos no estabelecimento dos programas de Português língua materna e no conteúdo dos mesmos, o que não significa que a sua contribuição deva ser exclusiva. Pelo contrário, ela complementa e é complementar da participação dos especialistas de literatura e, evidentemente, dos especialistas em ciências da educação, de pedagogos e psicólogos. Mas a participação dos linguistas na elaboração dos programas de língua materna e na formação dos respectivos professores constitui uma contribuição fundamental para os múltiplos aspectos de uma educação para o futuro.
Artigo publicado na revista "Actual" do semanário "Expresso", do dia 24-04-2004.