O verão em Portugal é um período marcado pelo regresso de muitos portugueses residentes no estrangeiro e dos seus descendentes. Muitos destes vêm de França, país que historicamente tem sido um dos destinos preferenciais da emigração portuguesa. Não é novidade que a marca social da estrutura linguística e da pronúncia do português destas comunidades tem sido, por via de imagens estereotipadas, fator discriminatório quer face à sociedade francesa, quer face à sociedade portuguesa. Uma das imagens mais comuns do típico emigrante português em França é a de um discurso marcado pela confluência de expressões francesas e portuguesas. Mas, será este tipo de discurso propositado ou haverá razões profundas e científicas que o expliquem?
A língua e o sotaque dos portugueses em França são resultados da convivência de dois idiomas num só falante, ou seja, são resultados de um bilinguismo em que, na grande maioria dos casos, uma das línguas se sobrepõe em uso e domínio a outra. Por estarem grande parte do ano em França e inseridos na comunidade francesa, muitos dos emigrantes portugueses usam com mais frequência o francês, que se torna a sua língua maioritária, sendo o português relegado para os contactos familiares e entre membros da mesma comunidade, passando, portanto, a ser a língua minoritária.
Estudos feitos sobre o bilinguismo inferem que na interação entre dois sistemas linguísticos pode existir transferência de certas estruturas existentes numa língua para a outra, sendo geralmente o sistema linguístico mais dominante a influenciar o menos. Portanto, se o francês for a língua mais frequente e aquela que domina no seio dos sistemas linguísticos desse emigrante, então, não será estranho que, quando esse mesmo falante comunica em português (o idioma menos utilizado), apareçam no seu discurso léxico e estruturas típicas da língua francesa. Apesar de, em muitos destes casos, o português ser a língua materna, uma vez que foi o primeiro sistema de socialização e aquele que foi adquirido nos primeiros anos de vida, caso a permanência em França seja longa e o francês a língua usada com mais frequência, o português destes emigrantes poderá sofrer o fenómeno da erosão linguística, isto é, o declínio de conhecimento linguístico previamente adquirido, que pode levar à perda temporária ou permanente da capacidade de utilização da língua portuguesa para fins comunicativos. Este fenómeno ocorre em consequência da alteração do grau de exposição linguística aos dois sistemas linguísticos, sendo frequentemente observado em contextos de migração.
No caso da segunda e terceira geração de emigrantes, também designados por lusodescentes, a situação linguística é um pouco diferente, na medida em que o domínio do português pode variar muito, estando dependente de fatores como grau de exposição à língua, a sua aprendizagem no ensino formal e a motivação para a conservar. Nestes casos, o português é a língua que herdaram dos seus laços familiares, ou seja, o português falado pelos pais, avós ou familiares próximos e que provém de um país de que ouviram falar e, na maioria dos casos, visitam nos meses de verão. Para estas gerações, o português tem um estatuto de língua de herança, conceito que dá conta da relação dos falantes com uma língua que gravita entre a língua materna, língua de origem, língua dos imigrantes, língua minoritária, língua comunitária ou língua da casa.
Segundo Cristina Flores, um falante de português como língua de herança é aquele com ascendência portuguesa que é emigrante de segunda ou terceira geração e nasceu no país de acolhimento ou emigrou em idade precoce, tendo contacto com este idioma sobretudo no contexto familiar. No fundo, nestes casos, a exposição ao português é feita em casa, pela família, enquanto o francês, língua maioritária destes falantes, é usado nas interações diárias e fora de casa. É justamente esta exposição restrita à língua de herança que está na base da argumentação de muitos investigadores que classificam a competência linguística deste idioma como deficitária e incompleta. Para além disso, há autores que consideram que o grau de erosão desta língua depende da idade da primeira exposição à língua da comunidade, visto que quanto mais cedo a criança é exposta à língua maioritária, maior a probabilidade de diminuir a sua proficiência a nível da língua familiar.
Os emigrantes de segunda e terceira geração crescem, por norma, num ambiente bilingue, adquirindo duas línguas que estão em permanente contacto. Esse contacto contribui para o desenvolvimento de uma gramática particular da língua de herança, sendo que a influência da língua maioritária sobre este idioma constituiu uma potencial fonte de mudança linguística. Estudos indicam que o domínio mais vulnerável a interferências é o vocabulário, daí o discurso em português de muitos lusodescentes em França ser pautado por palavras e expressões francesas. Todavia, os efeitos do contacto linguístico também se estendem a outros domínios da gramática.
Uma questão central no debate sobre bilinguismo e língua de herança é a de perceber se a aquisição de uma língua de herança é idêntica ao processo de aquisição de uma língua estrangeira ou segunda, ou seja, se a competência linguística do emigrante a nível da sua língua familiar se assemelha à competência de um falante que adquire essa língua como estrangeira ou segunda. Apesar de alguns trabalhos realizados neste âmbito apontarem para vantagens linguísticas do falante de herança, também está comprovado que as áreas em que estes têm mais problemas são as mesmas que causam dificuldades na aquisição e aprendizagem aos falantes deste idioma como língua estrangeira e segunda. No fundo, existem propriedades gramaticais resistentes, que tendem a fossilizar. Portanto, o ensino da língua de origem pode ser um contributo importante para a descrição e atenuação das propriedades críticas da língua de herança destes falantes.
A França é um dos poucos países europeus que tem tomado diversas medidas do foro educativo que têm tido em conta a diversidade linguística e cultural patente no seu território. As políticas linguísticas francesas relativas ao ensino das línguas de origem derivam de decisões unilaterais e de acordos recíprocos entre vários países. O governo português tem estabelecido protocolos oficiais com o governo francês, permitindo a criação da disciplina de Português na escola primária francesa e, ao mesmo tempo, a possibilidade de a língua portuguesa ser oferta curricular no ensino básico e secundário do sistema oficial francês. Atualmente, o português não se destina só aos filhos dos emigrantes, mas está aberto a todos aqueles que estejam interessados na aprendizagem de línguas estrangeiras. Todavia, a oferta do ensino do português é, muitas vezes, impossível de concretizar-se na prática em muitos estabelecimentos de ensino, estando relegada aos grandes centros urbanos, como Paris.
No fundo, o ensino da língua portuguesa para emigrantes e lusodescentes em França constituiu um património comum que importa proteger e desenvolver, sendo para isso necessários esforços consideráveis no domínio da educação, de modo a que a diversidade linguística e cultural não sejam um obstáculo à comunicação, mas antes uma fonte de enriquecimento e compreensão.