«(...) A defesa da língua portuguesa é uma responsabilidade de todos, falantes e escreventes. (...)»
Janeiro é o mês dos balanços. E os ditos são feitos com recurso à palavra falada e escrita. Ouvi e li coisas estranhas por estes dias. Não tanto pelos conteúdos, já que estas semanas são uma silly season invernal, um vale-tudo de apanhados e de pés de microfone. Os atropelos à língua, a falada pelos leitores de teleponto e a escrita nos rodapés da televisão, provocaram-me maiores agonias do que as queixas hepáticas motivadas pelos excessos festivos. Não foram só os erros ortográficos e o mais absoluto desprezo pelas regras de concordância de género, número, tempo ou modo. Dois mil e dezasseis fechou com um número muito significativo de luso-falantes e de luso-escreventes que não conhecem minimamente o significado das palavras, as regras de gramática quanto ao seu uso e o porquê e para quê da boa utilização da língua. A consoada referiu o vinho «muito incorporado», o balanço do ano futebolístico não esqueceu a participação de um jogador numa «sociedade de inversão» (fiquei a aguardar com esperança a queixa por difamação e injúrias movida pelo ludopedista), na noite de passagem de ano, o taxista de serviço opinou sobre o trânsito, «controla-se a "rótunda"», as mensagens oficiais e oficiosas desejaram coisas que, pretendendo ser boas, se revelaram, à luz do dicionário, malignas.
Como é que chegámos aqui? O processo de erosão começou há muito, com a extinção do ensino de latim e de grego, como se o português fosse uma novilíngua recebida de uma galáxia exterior. Desaparecida a oferta, desapareceram também os professores. Seria interessante que os habitantes de um certo edifício na Avenida Cinco de Outubro comparassem quantos professores de Latim e Grego existem por milhar de habitantes nos países que têm como língua oficial uma língua românica.
A desgraça prosseguiu com a passagem de uma aprendizagem livresca para uma aprendizagem televisiva, acompanhada de um crescente analfabetismo funcional por parte dos falantes de referência, que há muito deixaram de ser escolhidos pelo conhecimento ou domínio da língua portuguesa.
O pico da miséria linguística chegou com a simplificação tecnológica do uso da língua, com o proliferar de sms e emails escritos em crioulo tecnológico. A simples visita às caixas de mensagens dos principais órgãos de comunicação social permite constatar o óbvio: a língua em que muitos escrevem em Portugal só remotamente é aparentada com o português.
A certidão de óbito da língua escrita chegou com a convivência entre a norma anterior ao novo acordo ortográfico e a do novo acordo ortográfico. A ignorância ficou legitimada pela convivência anárquica entre duas normas contraditórias.
Segue-se a pergunta óbvia: como é que saímos disto? Como é que recuperamos os mínimos na utilização da língua portuguesa? Há que retomar o estudo do latim e do grego. Não só nos cursos humanísticos, mas na formação geral, para que se perceba que as palavras da língua portuguesa não nasceram com o Google. Não há qualquer razão para que as tecnologias da informação não possam ser utilizadas para reforçar a aprendizagem da língua portuguesa, não só por estrangeiros, mas também por portugueses. Mas não podemos continuar a ter referentes televisivos que não dominam a língua em que se expressam.
Dois mil e dezasseis foi um ano dado a manifestações folclóricas de patriotismo. Gostaria que 2017 fosse o ano da defesa da pátria, começando pela língua. É uma tarefa diária e para todos. E não é fácil: para muitos, o português é já uma língua estrangeira.