Ele tem seis anos e sabe o que é ter medo, ainda assim avança com um sorriso radioso para a escola. Não quer estar noutro lugar ou talvez deseje regressar apenas por um momento ao abraço da sua mãe que ficou no pequeno quarto do Centro para imigrantes. Foi ela quem o protegeu com o próprio corpo quando as bombas começaram a cair, foi ela que não permitiu que a morte se infiltrasse nas tremuras do seu espírito. Avança devagar para o recreio onde todos os meninos brincam. A correria dos colegas à volta de uma bola, os seus gritos e sorrisos exaltam, como um cântico, a sua vida de outrora, mas a língua que falam é um mundo de sons que anda na sua cabeça sem poisaram em significado algum. Encosta-se a um canto, parecendo parado na esquina da solidão. Então um menino atira-lhe a bola e ele passa a ter à sua frente o jogo em que decide entrar. Quando a campainha toca para as aulas já conhece três palavras em português.
Hoje em dia em Portugal, muitas escolas queixam-se que não sabem como lidar com a falta de domínio da língua por parte de muitos alunos imigrantes. A língua é ensinada na disciplina de Português de Língua não Materna sem que por vezes se atenda aos estudos que apontam para existência de períodos críticos na aquisição da língua e muito menos àqueles que sustentam a ligação entre a aquisição das competências linguísticas formais (ex: conhecimentos sobre a gramática de uma língua) e os seus propósitos comunicativos. Isto significa que, se nos centrarmos nos períodos críticos de aquisição das línguas, até aos 7 anos de idade os melhores professores para o ensino do português são as outras crianças. Nestes casos a preocupação dos docentes deverá ser a de estruturar jogos e situações que impliquem a interação verbal entre as crianças de forma a potenciar a comunicação e a aquisição de competências linguísticas. A partir destas idades, as aquisições linguísticas parecem implicar mais esforço e instrução explícita, tal não significa que estes princípios não se continuem a aplicar. Assim continua a ser fundamental começar por trabalhar a língua em situações funcionais, incidir mais sobre a oralidade numa primeira fase do que sobre a escrita e usar estes contextos como base para reflexão sobre os aspetos formais do Português, tal como a dimensão sintática e semântica.
Se os materiais de apoios proporcionados pelo Ministério da Educação em relação ao ensino do Português como Língua não Materna vão nesse sentido, parece-me ser ainda frequente que as estratégias de ensino da aprendizagem recorram ao mesmo tipo de estratégias que as usadas quando se ensinam Inglês aos alunos portugueses. Outro aspeto que dificulta a aprendizagem é o facto de as turmas concentrarem muitos alunos imigrantes da mesma nacionalidade que naturalmente comunicam mais entre si do que com alunos portugueses e desse modo sentem menos necessidade de aprender a língua.
Vários estudos demonstram como a interação e a necessidade de integração num grupo são os fatores que mais impulsionam os progressos na aquisição de uma segunda língua. Sem entrar em detalhes científicos, basta pensar no seguinte: muitas pessoas com idades abaixo dos sessenta anos foram desde cedo expostas à língua inglesa por causa da legendagem dos filmes. Esse fator, só por si, parece não ter promovido a aquisição do Inglês, ao contrário do que aconteceu com muitas jovens abaixo dos 25 anos, 30 anos que começaram a jogar jogos de computador com jogadores de várias partes do mundo sempre na língua inglesa. A variável interação implicada necessariamente nos jogos conduziu a um domínio da língua inglesa completamente diferente. Tanto é assim que a aquisição de livros em inglês cresceu 30% no último ano.
Os estudos indicam que a capacidade para usar com fluência duas ou mais línguas traz às crianças significativas vantagens em termos cognitivos, de vocabulário, ao nível da capacidade de focar a atenção (capacidade que se estende pela vida adulta) entre outros aspetos pelo que não será de desprezar também a possibilidade de alguns portugueses aprenderem a falar a língua dos alunos imigrantes.
Artigo a professora universitária e escritora Ana Cristina Silva transcrito com a devida vénia do Diário de Notícias de 27 de maio de 2024.