Frequentemente, quando estou a corrigir provas ou trabalhos dos meus alunos de português como língua estrangeira (PLE), encontro erros caricatos, mas que não deixam de ter uma explicação lógica. Há uns tempos, deparei-me com a expressão «você chove», que me levou a refletir sobre a forma como os verbos impessoais são abordados nas aulas de PLE. Afinal, tinha um aluno na sala que assumia o pronome você como sendo expletivo e que verbos impessoais (como chover) têm sujeito gramatical.
O pronome você é pessoal (não expletivo1) e constitui um caso particular do português, uma vez que a «pessoa semântica» não coincide com a «pessoa gramatical». Isto significa que você é um pronome da 2.ª pessoa semântica, porque é usado pelos falantes para se dirigirem ao seu ouvinte, mas gramaticalmente é um pronome da 3.ª pessoa, visto desencadear concordância verbal na 3.ª pessoa. Por esta razão, nos manuais dedicados ao ensino de PLE, o pronome você aparece, geralmente, com os pronomes pessoais da 3.ª pessoa ele e ela, o que pode levar a que um aprendente menos atento assuma que você é o equivalente ao pronome it no inglês. Na grande maioria dos manuais de ensino desta língua, este pronome surge igualmente com os pronomes pessoais da 3.ª pessoa he e she, porque, tal como em português, a sua concordância verbal é desencadeada nesta pessoa.
Outro problema por detrás deste erro está relacionado com os verbos impessoais. Em português, os verbos que denotam fenómenos meteorológicos (ex.: chover, nevar, trovejar) e mudança de uma parte do dia para outra (ex.: amanhecer, anoitecer) são impessoais, ou seja, não selecionam um argumento com a função de sujeito gramatical. Não tendo sujeito, estes verbos conjugam-se invariavelmente na 3.ª pessoa do singular.
De acordo com algumas teorias linguísticas contemporâneas, as frases cujo verbo principal é impessoal são analisadas como tendo um sujeito não argumental2, mais concretamente um pronome expletivo. Devido ao facto de o português ser uma língua de sujeito nulo, este pronome não tem expressão fonética na variedade padrão. Todavia, em línguas que não são de sujeito nulo, caso do inglês ou do francês, o pronome expletivo tem expressão fonética, podendo ser realizado como um pronome da 3.ª pessoa do singular neutro (caso do inglês: it rains) ou masculino (caso do francês: il pleut). Portanto, o aluno que produziu a expressão «você chove» desconhece que verbos como chover, em português, não selecionam um sujeito expresso, assumindo, ao invés, que apresentam um comportamento igual ao verificado em línguas como o inglês ou o francês, o que representará uma possível interferência destas línguas na sua aquisição do português.
No fundo, situações como «você chove» demonstram que o ensino dos pronomes pessoais e dos verbos impessoais deve ser cuidado e a explicação presente nos manuais trabalhada em sala de aula auxiliada com recurso a exemplos concretos do quotidiano e que façam com que o aprendente contacte com situações reais da língua portuguesa, para evitar equívocos ou más interpretações. Para além disto, mostram também que muitas vezes é preciso estar-se atento às interferências de outras línguas, para além da materna, no processo de aprendizagem.
1 «Palavra ou expressão empregada apenas para ornamento do discurso, com valor genérico de reforço ou ênfase» (In Infopédia).
2 Sobre o conceito de argumento (verbal), lê-se na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 1156): «[...] [O] verbo pleno é o elemento mais importante do sitagma verbal e da oração, na medida em que determina o número de expressões linguísticas que lhe completam o sentido e que são, por isso, indispensáveis, à boa formação semântica e sintática da oração. Estas expressões "pedidas" pelo verbo constituem os seus argumentos. Diz-se também que o verbo seleciona os seus argumentos.»