Em Portugal, o início de 2024 tem sido marcado pela discussão à volta das questões de género. Isto decorre da aprovação, em 5 de janeiro, pelo parlamento, do direito à escolha de nome próprio sem a necessidade de identificação de género. Dessa forma, elimina-se a obrigatoriedade de atribuir aos nomes próprios uma identificação específica com o sexo masculino ou feminino.
A este propósito, a Sic Notícias publicou uma notícia, que acompanha uma reportagem, intitulada: «Nomes neutros e não-binariedade? “Não é uma moda, não é uma coisa de agora”». Nada a apontar a este título! Contudo, acontece que no corpo da notícia encontramos algumas questões passíveis de serem analisadas, nomeadamente: a inconsistência na utilização de hífen em não binário/não-binário e não binariedade/não-binariedade, a grafia de binariedade, e os termos ageneridade, bigeneridade, trigénero, fluido e demigénero.
O hífen com o elemento prefixal não
Na notícia que acompanha a reportagem temos, no título «Nomes neutros e não-binariedade? “Não é uma moda, não é uma coisa de agora”», a utilização de hífen com o elemento prefixal não, mas ocorre a omissão do hífen no corpo da mesma: «... a SIC foi perceber o que a lei significa para pessoas não binárias».
Esta questão não tem uma resposta fácil ou concisa, e é ao consultar diversos dicionários em linha que notamos logo essa falta de consistência. Por exemplo, os dicionários da Academia das Ciências de Lisboa e Priberam indicam a forma não-binário (com o verbete não-binariedade no segundo dicionário), utilizando hifenes. Por outro lado, a Infopédia valida ambas as formas – não binariedade e não-binariedade –, assinalando que a grafia hifenizada está em conformidade com o Acordo Ortográfico de 1945 (AO) que em Portugal vigorou até 2015. Portanto, parece que este dicionário assume que o AO de 90 prevê a não hifenização de casos em que temos não como elemento prefixal. E, de facto, não se pode estar totalmente em desacordo. Acontece que as bases XV e XVI, que estipulam as novas regras para o uso do hífen no âmbito do Acordo Ortográfico de 1990, não incluem o caso do elemento não; daí poder assumir-se a omissão do hífen. É caso para se dizer que estaremos num dilema. Ainda assim, aquilo que não deve ocorrer é, sem desprimor, num mesmo texto, as duas grafias. O redator (ou o livro de estilo do jornal em causa) deve optar por uma e mantê-la ao longo do texto1.
O sufixo -dade
No título da notícia temos a expressão binariedade, mas, no corpo da mesma, encontramos: «O que é a não binaridade?». Afinal, qual é a forma correta? Binariedade, que denota a «qualidade ou identidade do que ou de quem não se identifica com o género feminino nem com o género masculino» (cf. Infopédia e Dicionário Priberam). Trata-se de um nome deriva de binário ao qual se agrega o sufixo -edade. Se consultarmos uma gramática, como a de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 97), aquilo que encontramos é que se formam substantivos abstratos de adjetivos com o acréscimo, entre outros, do sufixo -dade. Contudo, o adjetivo aqui em causa é binário, terminado por duas vogais finais átonas, e, nestes casos, acresce-se um e a este sufixo, ficando assim binariedade, como, de resto, temos contrariedade (adjetivo: contrário), seriedade (adjetivo: sério), solidariedade (adjetivo: solidário).
Denominações LGBTQ+
No contexto do movimento LGBTQ+ e dos estudos de género, como parte da busca por uma linguagem que pudesse abranger, reconhecer e respeitar a diversidade de identidades de género além das categorias tradicionais de masculino e feminino, surgem novos conceitos. Esta notícia dá-nos conta de alguns: ageneridade, bigeneridade, trigeneridade, fluidez e demigeneridade. Com eles, referimo-nos a: pessoas agénero, «sem identificação de género», no caso de ageneridade; pessoas que expressam duas identidades e comportamentos, no caso de bigeneridade; pessoas que pertencem a três géneros, no caso do trigeneridade2; pessoas cujo género muda mais do que uma vez, com o tempo, no caso de fluidez (adjetivo fluido); e pessoas que se identificam apenas parcialmente com determinado género, no caso de demigeneridade.
Estes são conceitos que devem ser tomados em consideração porque, mais do que uma questão de língua, eles desempenham um papel importante na criação de sociedades mais inclusivas e abertas, reconhecendo que as experiências de género são vastas e variadas.
1 No Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras, não se encontra atestado não binário (com ou sem hífen), mas temos o exemplo de não governamental, também ele grafado sem hífen. Também no Vocabulário Ortográfico Português (VOP) se omite o hífen depois do elemento prefixal não.
2 Trigeneridade tem como base de derivação trigénero, sufixado por -idade. Note-se que trigénero é palavra formada por prefixação de género. Apesar de a prefixação não alterar geralmente a classe de palavra que serve de base de derivação, é de relembrar que Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, na obra Inovação Lexical em Português (Edições Colibri e Associação de Professores de Português, 2005, p. 31), apontam alguns exemplos de palavras em que a prefixação provoca alteração da classe morfológica: rugas (N) – anti-rugas (Adj.). Consulte-se resposta completa acerca do assunto, aqui.