« (...) Karma, a forma espiritualizada, hinduísta, budista e chique do português «cá se fazem, cá se pagam», chega hoje ao, chamemos-lhe assim, consumidor, da forma mais rápida e direta possível, como um Uber. (...)»
O mesmo cidadão brasileiro que soltou uma gravação ilegal para as televisões de um diálogo entre a então presidente da República Dilma Rousseff e o seu antecessor Lula da Silva, que precipitaria o impeachment da primeira, no mais claro exemplo de interferência da justiça na política na história do Brasil, saiu do governo a queixar-se de interferência da política na justiça.
Sergio Moro, que também programou o calendário judicial para a prisão de Lula de forma a deixá-lo inelegível em outubro de 2018 e que, às vésperas da eleição, após subida a pique de Fernando Haddad nas sondagens, enviou detalhes de uma delação confidencial supostamente prejudicial aos interesses do PT [Partido dos Trabalhadores] do ex-barão do partido Antonio Palocci, quer passar-se por vítima.
Pois bem, é mesmo: ele é a última vítima da «uberização do karma».
Karma, a forma espiritualizada, hinduísta, budista e chique do português «cá se fazem, cá se pagam», chega hoje ao, chamemos-lhe assim, consumidor, da forma mais rápida e direta possível, como um Uber.
Joice Hasselmann, uma das deputadas eleitas na esteira da «nova política à brasileira» que fez do Congresso Nacional uma espécie de deprimente reality show de subcelebridades – a que não falta um veterano no assunto, o ex-ator porno Alexandre Frota –, ganhou visibilidade por fabricar fake news pro-Bolsonaro em campanha.
Tinha currículo: enquanto jornalista foi acusada por dezenas de colegas, inclusivamente da própria revista Veja onde "trabalhou", de plágio.
Pois bem, ela agora chora no parlamento por, na qualidade de dissidente do bolsonarismo, ser alvo de uma chuva de fake news fabricadas pelo – é ela quem acusa – segundo filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, líder do «gabinete do ódio», escritório especializado em arrasar reputações com sede num anexo do Palácio do Planalto.
Mais: para sua natural indignação, é apelidada de «porca» e de «miss Piggy» pelo exército de "tuiteiros" que replica os ataques do «gabinete do ódio». Ela que, um dia, chamou Dilma de vaca no mesmo Twitter.
Como Moro e Hasselmann, também Aécio Neves, Eduardo Cunha e Michel Temer sentiram na pele a «uberização do karma». Os três chefs que cozinharam o impeachment de 2016 acabaram as suas carreiras políticas na sequência.
Cunha, que disse «Deus tenha misericórdia desta nação» ao votar pela queda da inimiga Dilma, cumpre, sem misericórdia, 24 anos de prisão.
Aécio, aquele em quem os «cidadãos de bem» que hoje apoiam Bolsonaro apostavam para erradicar a corrupção do PT na eleição de 2014, é um exemplo vivo, mais morto do que vivo na verdade, de político corrupto.
E Temer arrastou-se como presidente mais corrupto da história – quase todos os seus próximos são hoje presidiários – sobretudo depois de ter sido apanhado nas catacumbas do oficialíssimo Palácio do Jaburu a combinar com um empresário a compra do silêncio de Cunha.
Chegou em pomposo carro oficial ao Planalto, saiu rumo ao encontro com o seu karma num Uber.
Também Lula, tão alertado pelas franjas esquerdistas do PT para não se unir, em nome da "governabilidade", com o establishment de Brasília, na forma do MDB (de Temer e Cunha) e do chamado "centrão" (grupo de partidos viciados em nacos do poder e do orçamento), sentiu o karma na pele.
Acabou traído pelo tal MDB e pelo "centrão", caiu do poder com estrondo e foi até mandado para a prisão – nesse dia só tinha as franjas mais esquerdistas do PT a seu lado.
Tudo bem, ainda demorou no Planalto, com alto índice de popularidade e políticas elogiadas mundo afora, por longos oito anos – mas nesse tempo ainda não havia Uber, só táxis.
O karma passou pela esquerda, pelo "centrão", pelo MDB, pelos dissidentes do bolsonarismo – só ainda não chegou a Jair Bolsonaro.
Mas o presidente está a brincar com o fogo. Fez do ódio política pública na educação, nas relações exteriores, no ambiente, na cultura; chamou a covid-19 de gripezinha e respondeu com um negligente «e daí?» quando confrontado com a pilha de mais de 5000 cadáveres provocada pela doença; e ainda provoca Moro.
Previna-se: Moro já provou que, com aquela cara de bonzinho, é capaz do diabo; a gripezinha mata mesmo; e o ódio é a base do karma negativo.
N. E. — A forma karma, que é a do original transcrito e está registada como estrangeirismo, registe-se o aportuguesamento já dicionarizado: carma (cf. Dicionário Houaiss). Quanto ao título, ocorre o termo uberização – que pressupõe o verbo uberizar, um derivado no nome própio Uber –, pelo qual se entende o negócio apoiado nas tecnologias móveis que liga, através de uma plataforma digital, o consumidor ao fornecedor de produtos e serviços de forma personalizada e o mais diretamente possível (cf. Alexandra Leitão, "Uberização da economia", Jornal Económico, 05/09/2017). O nome comum e o verbo donde procede têm também sido empregados em tom crítico, porque a oferta de serviços pelas plataformas digitais acaba por se tornar frequentemente uma estratégia empresarial para fugir às responsabilidades sociais decorrentes da admissão de trabalhadores (muitas vezes chamados "colaboradores"; cf. Safaa Dib, "A uberização desregulada do trabalho", Jornal Económico, 17/01/2020).
Texto publicado em 30 de abril de 2020 no Diário de Notícias, e da autoria do correspondente deste jornal em São Paulo, o jornalista português João Almeida Moreira.