DÚVIDAS

Qual em frases interrogativas (Portugal vs. Brasil)

Sou portuguesa, mas vivo atualmente no Brasil. Gosto de ouvir e comparar as especificidades regionais da língua mas, por vezes, surgem-me algumas dúvidas quanto à "gramaticalidade" de algumas construções frásicas. Uma delas inclui o uso que os brasileiros fazer do pronome interrogativo qual – ou que nós não fazemos, dependendo do ponto de vista. :)

Em Portugal (pelo menos em Lisboa, que é de onde eu sou) não é comum usar o pronome interrogativo qual a preceder imediatamente um substantivo. Normalmente usamos o que: «Em que casa é que ela vive?» (E não «Em qual casa...?»); «Para que dia ficou marcada a reunião?» (e não «Para qual dia...»); «Com que roupa é que vais?» (e não «Com qual roupa...?»), etc.

Usamos normalmente o qual se ele surge como pergunta inteira («– Gosto daquele relógio»; «– De qual?») ou se vem diretamente antes de um verbo (incluindo o famoso auxiliar de perguntas «é que»): «De qual é que gostas mais?»; «De quais gostas mais?»

No entanto, ouço com bastante regularidade os brasileiros utilizarem «de/em/para qual + substantivo». Um dos exemplos mais comuns é com os dias: «Em qual dia da semana você nasceu?» (Enquanto um lisboeta perguntaria: «Em que dia da semana...?»)

A minha pergunta é (sem pôr em questão a legitimidade da prática popular dos brasileiros em fazer uso dessa construção): do ponto de vista puramente gramatical, é possível dizer que está correto perguntar «qual + substantivo» («Em qual dia?»), ou soa-me mal simplesmente porque eu não estou habituada?

Desde já agradeço antecipadamente a resposta a esta dúvida. E agradeço pelo vosso excelente trabalho em geral. Um verdadeiro serviço de utilidade pública!

Obrigada!

Resposta

Apesar de portugueses e brasileiros, entre outros povos, falarem o mesmo idioma, não podemos esperar que a gramática funcione exatamente da mesma maneira nas diferentes variedades da língua portuguesa.

O português de Portugal e o português do Brasil são duas das variedades que têm sido abordadas frequentemente em obras de descrição e codificação. Entre as várias diferenças, encontra-se justamente a focada pela consulente: no Brasil, não sendo impossível empregar que como determinante interrogativo, é frequente empregar qual com essa função (ou, para ser mais prático, sem ser seguido da preposição de). Esta possibilidade é gramatical e está atestada tanto em gramáticas como em dicionários produzidos no Brasil. Por exemplo, é referida por Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2002, p. 170):

«Qual e também que, indicadores de seleção, normalmente são pronomes adjetivos:
Em qual livraria compraremos o presente?
Em que livraria compraremos o presente?»

O Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (s. v. qual) também dá conta do uso de qual como determinante interrogativo:

«QUAL. Pron [Interrogativo] 1 Introduzindo uma pergunta de caráter seletivo, refere-se a coisa ou pessoa dentre outras: Qual blusa você prefere? Nem sabia qual filho nascera primeiro. Diga qual bebê é o mais lindo. Em qual estante está o livro que você pediu? [...]»

Este uso não se verifica em Portugal, pelo menos, em frases interrogativas que tenham o predicado realizado; nestas frases ocorre sistematicamente que antes de substantivo («em que livraria compraremos...?»; «Que blusa prefere?»; «Nem sabia que filho nascera primeiro»; «Diga que bebé é o mais lindo.»; «Em que estante está o livro?»). No português de Portugal, é, no entanto, possível associar tanto que como qual a um substantivo em interrogativas sem realização de predicado, com a função de identificar o referente de um grupo nominal pronunciado anteriormente em discurso:

«– Falei com o funcionário.

  – Que/qual funcionário?»

Qual ocorre ainda antes de um grupo nominal definido, isto é, determinado por artigo definido, em interrogativa sem verbo:

«Qual o funcionário em causa?»*

Para quem fala português de Portugal, é, portanto, estranho o uso de qual entre brasileiros. A situação inversa, ou seja, a do uso quase sistemático de que, também pode surpreender os brasileiros. Mas, como dissemos, acontece que, em todas as línguas que se repartem por diferentes países, as diferenças são inevitáveis mesmo nas estruturas gramaticais, apesar da ideia ou sentimento de unidade do idioma. É por isso que se diz que o português tem não uma, mas várias normas nacionais, entre elas, duas que historicamente têm sido alvo de grande atenção por parte de gramáticos e linguistas, o português lusitano e o português brasileiro, as quais nem sempre convergem gramaticalmente.

Agradecemos as suas palavras finais.

* Pode ocorrer um verbo neste tipo de interrogativas mas sempre numa oração subordinada: «Qual o funcionário que está em causa?»

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa