Crónica do diretor adjunto do Público, in memoriam de Duda Guennes, que escrevia «com inteligência, sabedoria, brio, amor e humor, coisas nem sempre facilmente conciliáveis». E que, em vida, foi uma «reconhecida “ponte” humana» entre [Brasil e Portugal]».
Se Big Lebowsky tinha o Dude, Portugal e o Brasil tinham o Duda. O primeiro é um filme de culto; e o segundo era um culto jornalista brasileiro que se deixou seduzir por Portugal nos idos de 70 e por cá ficou, escrevendo sempre, até que a morte não o deixou ir além dos 74 anos. Um cancro, disfarçado nas notícias mais contidas de «doença prolongada» (que raio de nome), foi o culpado de mais esta perda.
Nascido Eduardo Guennes Tavares de Lima no Recife, Pernambuco, a 21 de Julho de 1937, a língua portuguesa não tinha para ele segredos. Em encontros de toda a espécie, gabavam-lhe – mérito dele – a qualidade de excelente conversador e contador de histórias. Meu Brasil Brasileiro, crónica que assinava regularmente no jornal A Bola, era a mais antiga da imprensa lisboeta. Escrevia com inteligência, sabedoria, brio, amor e humor, coisas nem sempre facilmente conciliáveis. Morreu na madrugada de 30 de Setembro, mês em que chegou a Portugal e com a idade do ano em que chegou: (19)74. Outra coincidência: morreu também quando escrevia, decerto alertado pela doença, um livro sobre a morte.
Mas foi a vida a sua principal musa, e dela retirou Duda Guennes tudo quanto pôde, no Brasil (onde foi colaborador da Rede Globo, do Pasquim e do Jornal do Commercio) ou em Portugal, sendo ele próprio reconhecida “ponte” humana entre os dois países. A língua, já se disse, era arma que esgrimia com perícia, para lá de qualquer querela ortográfica. Na blogosfera, onde foi notada a sua perda, citam-lhe crónicas irresistíveis. Uma, no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, intitula-se Falar difícil e dá exemplos de gente que, por «cultura bacharelesca» ou «vivência científica», adopta um linguajar quase impenetrável. Veja-se a escrita de um poeta brasileiro «quase desconhecido», Luiz Lisboa:
«Tu és o quelso do pental ganírio/ Saltando as rimpas do fermim calério,/ Carpindo as taipas do furor salírio/ Nos rúbios calos do pijom sidério.// És a bartólia do bocal empírio./ Que ruge e passa no festim sitério,/ Em ticoteios de partano estírio,/ Rompendo as gambias do hortomogenério.»
Segundo exemplo: um advogado chamado Edson Canaã recorreu em 1973 de uma sentença com este «arrazoado caótico» (diz Duda):
«O jurado mais inhenho, mais tataranha, mais tatibitate sabe que essa asserção é apodíctica. O ametódico, o arrispidado, o baguari, o beldroegas, o borboró, o bordalengo, o calongo, o farromeiro, o farroqueiro, o tuxuana sabem que a transparência, a limpidez da verdade só aparecem em juízo, pois a busca policial é recoberta de improficiência.»
Por fim, Manuel Sequeira lembra no blogue Escrita-em-dia uma crónica de Duda Guennes onde este transcrevia algumas frases escritas por alunos brasileiros «nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio». Alguns eloquentes exemplos:
«O seromano tem uma missão»; «Nesta terra ensiplantando tudo dá»; «Enquanto isso os Zoutros... tudo baixo niveu»; «É um problema de muita gravidez»; «Vamos deixar de sermos egoístas e pensarmos um pouco mais em nós mesmos».
Pois vamos é pensar mais em Duda e no muito que ele nos deixou.
In jornal Público de 30 de setembro de 2011.