«Coice. S. m. Pancada que certos quadrúpedes, especialmente os equídeos, desferem com os cascos traseiros firmando as patas dianteiras no chão.»
Com poucas alterações, é assim que o Aurélio e o Houaiss, os dicionários mais populares do Brasil, definem uma prática dos cavalos, jumentos, mulas. A diferença é que esses infelizes, os mais brutalizados pelo homem na História, o fazem como autodefesa. Mas o coice evoluiu e as futuras edições dos dicionários terão de acrescentar uma nova aceção ao verbete: «Sistema de governo a patadas, inaugurado por Jair Bolsonaro no Brasil (2019-2022) para intimidar os adversários, destruir as instituições e tentar eternizar-se no poder.»
Nelson Rodrigues tinha uma maneira peculiar de descrever alguém que primasse pela brutalidade e pela estupidez: «É um centauro, só que metade cavalo e a outra metade também.»
Ninguém faz tão jus à definição quanto Bolsonaro. Desde que tomou posse na presidência, há três anos e meio, não se passou um dia em que não escoiceasse no varejo e no atacado. É a sua maneira de se comunicar, com uma ferradura no lugar da arcada dentária. Mas será um erro compará-lo aos irracionais em que se inspira. Cada golpe dos seus cascos é pensado antes de ser desferido e programado para que o alvo o receba pelas costas.
Bolsonaro já espezinhou, corrompeu e prostituiu grande parte da justiça brasileira, da comunidade de informações, da segurança, da diplomacia, da economia, do orçamento, da ciência e tecnologia, da estatística, do meio ambiente, do património histórico, dos direitos humanos e de que outras disciplinas se pense. Na saúde, os seus coices foram letais: no apogeu da covid, a sua sabotagem das vacinas, das máscaras e do isolamento social e campanha pelo uso de substâncias inócuas resultaram em boa parte dos nossos quase 700 mil mortos pela pandemia. Não contente, dedicou-se, no fim do ano passado, a uma cavalhada para sabotar também a vacinação infantil. Mais recentemente, fez da educação no Brasil um balcão de negócios, em que o seu titular da pasta promovia a extorsão das pequenas cidades por “pastores” evangélicos íntimos do estábulo presidencial.
Às vezes, o seu estilo equino de governar sofre tropeços. Na semana passada, ele foi surpreendido pelas denúncias de assédio sexual praticadas pelo diretor de um dos principais bancos estatais contra dezenas de funcionárias do banco. Por enquanto, Bolsonaro ainda guarda silêncio sobre esse diretor, que ele escolheu e tornou seu colega de patuscadas. Mas, se as acusações ameaçarem Bolsonaro de alguma forma, o sujeito será atirado ao mar sem contemplação. Se Bolsonaro não se furta a pisotear nem o próprio Exército — tira generais do anonimato, usa-os como escudo por algum tempo e depois chuta-os pela janela —, não será pelos amigos que arriscará o seu pescoço. É da sua natureza tratar até os seus aliados a pontapés.
Um dia, os estudiosos escreverão sobre como Bolsonaro fez tudo para nos rebaixar, como cidadãos, ao seu nível de cocheira. Até ao seu Governo, todos os Presidentes que tivemos, por mais cafajestes, mantinham alguma compostura. Mas ele não sabe o que é isso: nas conferências de imprensa, que profere aos perdigotos, manda os repórteres calarem a boca, chama-lhes nomes e, se forem mulheres, faz insinuações de cunho sexual. É um espanto que até hoje um jornalista não o tenha mandado à merda. Se isso acontecer, Bolsonaro nada poderá fazer — é a linguagem que ele propôs e tornou corrente no seu Governo.
Mesmo os ditadores militares (1964-1985), que se faziam de antolhos às perseguições, torturas e mortes, eram minimamente recatados. Do mais rústico deles, o general João Batista Figueiredo (1979-1985), o pior que se ouviu da sua boca foi a frase: «Gosto mais do cheiro de cavalo do que do cheiro de povo.» Era explicável: tendo passado a vida num quartel da Cavalaria, Figueiredo habituara-se de tal forma ao cheiro de suor das alimárias que qualquer outro aroma lhe parecia repulsivo. Que eu saiba, Figueiredo e Bolsonaro — este também de origem militar, tenente expulso do Exército em 1988, por terrorismo contra o próprio Exército, e comicamente reformado como capitão — nunca se encontraram em pessoa. Pior para Figueiredo: ao lado de Bolsonaro, ele pareceria um príncipe. Aliás, a alcunha de Bolsonaro no Exército era “Cavalo”.
Há dias, Bolsonaro postou-se nas patas da frente e endereçou os cascos traseiros contra mais um chefe de Estado: o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Por ocasião da visita de Marcelo ao Brasil, Bolsonaro convidou-o a almoçar e, ao saber que, dois dias depois, o visitante iria encontrar-se também com Lula, desconvidou-o, cancelou o almoço. Cuspiu no prato em que Marcelo, felizmente, não comeu.
Marcelo não foi o primeiro governante a ser desfeiteado pelo quadrúpede. Bolsonaro já emitiu relinchos contra os governantes da China, Argentina, Noruega, Dinamarca, Colômbia, Canadá, países árabes, Cuba, Venezuela, França, Alemanha e Estados Unidos. Faltou à reunião em Brasília com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian para ir ao cabeleireiro — antes, ofendera Brigitte Macron, primeira-dama de França, chamando-a de velha e feia. Pisou o pé da chanceler Angela Merkel num jantar de líderes do G20. E quando, no mesmo evento, Joe Biden passou por ele sem o reconhecer, Bolsonaro atribuiu-o à idade avançada do Presidente americano.
Bolsonaro armou os cascos contra Marcelo, mas este não se deixou atingir — esquivou-se sem qualquer dificuldade. Marcelo disse que, se houvesse o almoço, ótimo; se não, ninguém morria e o que importava era a amizade entre portugueses e brasileiros. E teve tempo para algo muito melhor: foi à praia de Copacabana, sem seguranças, acompanhado apenas do seu ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva. Deu um mergulho no mar, passeou pela areia e falou com banhistas cariocas que o reconheceram e admiraram.
Mas não é certo que ninguém morreu. Naquele dia, graças à frase de Marcelo, Bolsonaro morreu um pouco. O desprezo pode ser mais letal do que o coice.
Cf. Os políticos não são gente como nós + Pequena Enciclopédia do Bolsonarismo
* Crónica do jornalista e escritor brasileiro Ruy Castro, transcrita, com a devida vénia, do semanário português Expresso, com a data de 8 de julho de 2022.