«Existe até um nome para o uso excessivo do gerúndio: endorreia», escreve Luís Fernando Veríssimo, em crónica publicada no “Actual” do semanário “Expresso”, de 2 Agosto de 2008, intitulada “A matutar”. E propõe-nos «um dicionário alternativo da língua portuguesa, não com o significado que as palavras têm mas com o significado que deveriam ter»...
No dia 22 de Abril de 1500, Pedro Álvares Cabral não estava descobrindo o Brasil, estava a descobrir o Brasil. Um dos grandes mistérios da nossa história e da história da nossa língua em comum é: porque é que o gerúndio (forma nominal do verbo caracterizada pelo sufixo "ndo"), que quase não é usado em Portugal, é tão usado no Brasil? Já se disse que a diferença entre o português brasileiro e o português português é uma questão de tempo e de espaço. Os portugueses falariam como falam, correndo (ou a correr), comendo (ou a comer) sílabas, trocando o gordo "o" pelo menos expansivo "u", porque lhes falta o espaço e o tempo, que encontraram nas colónias, para palavras inteiras e dicção pausada. Seria uma língua apertada. Mas isto não esclarece o mistério do gerúndio. «Estar a fazer» dá mais a ideia de uma acção contínua e ponderada do que o rápido «fazendo». O gerúndio é que denunciaria uma língua oprimida pelo pouco tempo e pela falta de espaço. Mais uma tese demolida.
Atribui-se a proliferação do gerúndio no português brasileiro à influência do inglês, que teria provocado o gerundismo, ou o hábito de empregar o gerúndio, mesmo quando não cabe ou não se deve. Existe até um nome para o uso excessivo do gerúndio: endorreia. Uma palavra suficientemente horrível para fazer os portugueses se sentirem vingados por tudo o que fizemos com a língua do Cabral. Digam o que disserem, de endorreia eles nunca sofreram.
Poderia existir um dicionário alternativo da língua portuguesa, não com o significado que as palavras têm mas com o significado que deveriam ter. Por exemplo:
Áulico – Condição de palidez, causada pela falta de ferro no organismo (como em «Ele me parece um pouco áulico»);
Azáfama – Nome de uma planta amazónica que come périplos (um tipo de minivagalume) e outros insectos;
Bizarro – Duas vezes zarro; termo de admiração, de origem obscura (segundo alguns, «zarro» seria o nome, de origem cigana, dado a quem casa com uma húngara e sobrevive);
Pedante – Posição de um pé, ligeiramente recuado e em ângulo, assumida para citar poetas italianos do século XIII no original;
Pitéu – O mesmo que «croque», mas dado com o lado da mão, numa chicotada;
Plúmbeo – O ruído que faz um objecto ao cair na água;
Pundonor – Do italiano "pundonore", a exigência feita pelo Papa Gregório VI, chamado "Il Matto", de ser saudado com puns pelos seus cardeais;
Querela – Dança folclórica portuguesa em que os pares se xingam, trocam pitéus na orelha e cada um vai para a sua casa, emburrado.
Questão – Se existem rosas de muitas cores, chamar uma rosa de cor de rosa não seria uma imprecisão semântica? Como não existe só uma cor de rosa, identificar uma como «cor de rosa» não significa chamar todas as outras cores de ilegítimas, ilusórias, impostoras ou extra-oficiais? Correcto seria chamar a rosa cor de rosa de cor de rosa cor de rosa. Ou cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa (vai acabar o espaço) cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa (acabou)...
in "Expresso", 2 de Agosto de 2008