«(...) Portugal não tem qualquer política de língua, nem tem qualquer empenho na promoção do idioma nacional. (...)»
Como nasceu a ideia do Ciberdúvidas?
Formalmente, o Ciberdúvidas nasceu a 15 de janeiro de 1997. Mas a ideia já borbulhava uns 15 anos antes, entre mim e o meu então colega e amigo no Expresso, João Carreira Bom, falecido em 2002. Essa experiência, comigo depois no Público e ele já na área da comunicação e imagem, confrontou-nos com a insuficiência, então, de um aconselhamento linguístico minimamente célere para o trabalho da revisão e dos copidesques – um serviço que o Expresso e o Público tinham passado a dispor pela primeira vez na imprensa portuguesa. À imagem do modelo já existente há muito nos EUA, por exemplo, os copidesques vão muito além da função “caça-gralhas” dos antigos revisores tipográficos, aliando, para tal, competência jornalística e um profundo conhecimento da língua.
E como se salta dos copidesques para o Ciberdúvidas?
A melhoria acrescida na escrita jornalística que trouxe a criação do serviço de copidesques na imprensa portuguesa veio acentuar, no entanto, a inexistência, à data, de um consultório – a internet dava ainda os seus primeiros passos – especializado de respostas a dúvidas sobre o bom uso da língua portuguesa. Basta lembrar que nem se havia publicado, ainda, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa e que o único Vocabulário ortográfico existente em Portugal, de Rebelo Gonçalves, estava há muito ultrapassado (edição de 1996) e só disponível nos alfarrabistas… Amiúde, recorríamos, então, à Sociedade da Língua Portuguesa, cujos consultores, os professores José Neves Henriques e Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca, foram também os primeiros do Ciberdúvidas. Nascido no início da popularização da internet – nem tivemos dúvidas quanto ao título… –, o Ciberdúvidas assume-se logo como um serviço gratuito e sem fins lucrativos, adotando uma estrutura e uma linguagem jornalísticas, o que, passados 25 anos, ainda o diferencia de todos os demais espaços na área do português surgidos, entretanto, nomeadamente no Brasil. Quando o projeto foi avante, nada havia do género, em Portugal ou noutro país qualquer, e hoje continua a não haver. Por não se limitar a um mero consultório acessível ao cidadão comum, lusofalante ou não, e nas mais variadas latitudes do mundo. É mais do que isso: um verdadeiro jornal da língua oficial dos países da CPLP – outra particularidade do Ciberdúvidas é o acolhimento, e em pé de igualdade, das especificidades do português em Portugal, no Brasil nos PALOP e em Timor-Leste –, com 12 áreas temáticas distintas e devidamente delimitadas. Desde o que é esclarecimento linguístico e informação útil, caso das notícias, recensões bibliográficas, diversidades, como agora à volta do léxico da guerra na Ucrânia, um glossário regularmente atualizado sobre a covid-19 na língua, e o que é opinião (Pelourinho, Controvérsias, etc.).
Como temos a garantia de que o Ciberdúvidas está certo nas respostas que dá às dúvidas dos seus consulentes?
Quem nos procura, normalmente quer saber qual é a norma culta. Quem responde são linguistas qualificados e outros especialistas da área em causa (por exemplo, quando à volta de termos médicos ou da informática), apoiados no que atestam as gramáticas e os dicionários de referência. Quando não há ainda abonação bibliográfica, o consultor fica com a total liberdade de emitir o seu próprio juízo – é o caso dos neologismos e de modismos menos rigorosos –, um campo, o do descritivismo linguístico, contemplado igualmente no Ciberdúvidas. E como a língua está cheia de polémicas ao longo dos tempos, tudo o que for contestado ou encerre perspetivas diferentes tem o tratamento equidistante, como se faz em qualquer jornal com as polémicas: remetido para a rubrica Controvérsias (de momento, já com perto de uma centena de temas contemplados).
O Ciberdúvidas não pretende ser o juiz da língua, portanto.
Exato. Os esclarecimentos linguísticos prestados, por parte dos consultores do Ciberdúvidas, e sempre devidamente assinados por quem responde, só a eles responsabiliza e às obras e respetivos autores citados. O que nem sempre é fácil, especialmente devido à inexistência ou desatualização de muitas dessas obras. Por exemplo, a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Lindley Cintra e Celso Cunha, já leva quase 40 anos da sua publicação, enquanto o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, coordenado pelo professor Malaca Casteleiro – publicado oito anos antes, portanto, da entrada em vigor no país da nova norma ortográfica de 1990 –, nunca foi atualizado, apesar de todas as promessas da Academia das Ciências de Lisboa.
Portugal não é propriamente um bom zelador da língua, com uma Academia atuante, atualização de vocabulário, publicação de dicionários…
Não, nada mesmo. Enquanto os brasileiros têm uma Academia especificamente de Letras, nós temos uma Academia das Ciências, na qual, há umas cinco décadas, ainda havia quem se interessasse pela língua, o que hoje já não acontece, de todo. No Brasil, editam-se e atualizam-se com frequência gramáticas, dicionários e todo o tipo de obras sobre a língua, e para todo o tipo de leitores. Basta compulsar a obra monumental e regularmente atualizada que é o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras, com perto de 400 mil entradas. Ou o Dicionário Houaiss, na minha opinião, o mais completo dicionário do português.
Ou, vermos, em absoluto contraste, o que é uma política da língua, como se faz em Espanha. Onde, é verdade, não há nenhum Ciberdúvidas, mas há uma Fundação para Espanhol Urgente (Fundéu), entidade pública que junta a agência de notícias Efe, a Academia Real de Espanha e o Instituto Cervantes. Com recomendações diárias e diretas aos meios de comunicação de língua espanhola – portanto, também os da América Latina –, e sempre com o foco na atualidade noticiosa, tem como missão estratégica o bom uso do idioma de Cervantes no espaço mediático. Contando com o patrocínio de um banco privado, congrega 20 académicos nesse serviço. Qualquer comparação connosco é pura fantasia…
O Instituto Camões alguma vez colaborou, de alguma forma, com o Ciberdúvidas?
Uma única vez, na presidência de Simonetta da Luz Afonso, e com um montante esporádico e residual, tinha acabado de falecer quem pagava os custos do Ciberdúvidas, do seu bolso, João Carreira Bom. Depois, nunca mais. Posteriormente, até aconteceu um triste episódio. Depois de a Guiné Equatorial ter sido admitida na CPLP, com uma das condições passar pela adoção do português como uma das línguas oficiais do país, estruturámos e apresentámos uma proposta nesse sentido. Não pôde ser concretizada, porque, segundo nos foi comunicado, o Instituto Camões propunha-se assumir essa tarefa. Até hoje. Nem sequer se deram ao trabalho de assegurar uma versão em português da página oficial do Governo de Malabo…
O Ciberdúvidas tem tido um percurso linear, ou, pelo contrário, é possível organizá-lo em fases?
Podemos estabelecer duas fases. Uma inicial, que, por influência dos dois acima citados consultores ligados à Sociedade da Língua Portuguesa, marcou uma orientação claramente normativista. Depois, muito por influência da professora Maria Helena Mira Mateus, entre os colaboradores regulares do Ciberdúvidas impôs-se também a “escola” mais descritivista, atenta ao registo dos usos e mais sensível às variantes da linguagem popular. Há erros que, pelo uso, passaram a ter registo dicionarístico. Por exemplo, a forma correta é “insosso”, mas o uso acabou por tornar admissível o plebeísmo “insonso”. Na primeira fase do Ciberdúvidas seria, inevitavelmente, matéria de Pelourinho…
Esse “pode ser só assim” e também o seu contrário, não terá que ver com a inexistência de uma autoridade na língua, entre nós?
Certamente. É o que falha em Portugal: não dispormos de uma Academia mais preocupada e zelosa com a língua nacional, como têm os brasileiros e os espanhóis. Nem sequer, na orgânica governativa, se pôs fim, alguma vez, à descoordenação da tutela política da língua, dispersa entre três ministérios de costas voltadas entre si: Educação, Cultura e Negócios Estrangeiros.
O Acordo Ortográfico, ao possibilitar variantes, veio contribuir para essa dispersão? E como é a sua aplicação no Ciberdúvidas?
As variantes vocabulares e fonéticas sempre as houve, a começar em Portugal, do continente aos arquipélagos da Madeira e dos Açores. O que o Acordo Ortográfico estabeleceu foram regras uniformes, mais claras e alargadas ao que tínhamos quanto à norma de 1945. Um bom exemplo é o emprego ou não do hífen ou dos chamados acentos desambiguadores. E o que tem ele que ver com os mil e um erros que se ouvem e leem no espaço mediático, a esmagadora maioria dos quais sem haverem tido qualquer alteração ortográfica? O problema é só um: o destratamento da sua própria língua por parte de quem tem a obrigação profissional e política de, ao menos, consultar o certo e o errado – hoje tão fácil e célere quanto uma busca no Google.
Quanto à adoção do Acordo Ortográfico pelo Ciberdúvidas há uma simples justificação: é a norma oficial nos dois países com maior número de acessos, sendo que uma fatia importante deles pertence à comunidade escolar, em cujos estabelecimentos de ensino se segue a norma de 1990. Mas respeitamos, sempre, a opção de quem escreva segundo a norma de 1945, além de termos o maior repositório existente sobre a sua querela, em arquivo, permanentemente disponível.
Quais são as vantagens da integração do Ciberdúvidas no Iscte, desde julho de 2019?
Para mim, pessoalmente, e para a Associação Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, deixou de haver o permanente sufoco financeiro que um projeto desta natureza, sem apoios, acaba por gerar. Quanto ao Iscte, dispondo de um ativo com enorme potencial de desenvolvimento na promoção da língua portuguesa, em complemento à atividade geral de ensino e investigação que desenvolve, quero crer que foi o melhor que podia ter acontecido à continuação do Ciberdúvidas, 25 anos após a sua criação.
O que gostaria que fosse o Ciberdúvidas, no futuro?
Antes de mais, é essencial a sua modernização tecnológica e visual. É um assunto que temos vindo a trabalhar e que, certamente, terá desenvolvimentos positivos. O Ciberdúvidas acumula, no presente, um acervo de 45 mil textos, que importa preservar e disponibilizar da melhor forma possível. E, claro, gostaria que se preservasse o fator distintivo do Ciberdúvidas: bem mais do que um mero consultório linguístico.
Entrevista concedida à revista EntreCampus n.º 4, em maio de 2022.